Publicação original: 2010por Joel Rufino dos Santos
A GALINHA DOS OVOS DE OURO
Joel Rufino dos Santos
O espetáculo da pobreza, sobretudo da favela, é constrangedor. Pensamos se não seria melhor que os pobres desaparecessem; que um mundo sem pobres seria melhor; que bom fôssemos todos ricos; etc.
Por que os pobres não desaparecem? Ou por outra: por que é tão difícil acabar com a pobreza?
A tentativa de responder a essa pergunta deu origem, em fins do século XVIII, na Europa, a uma ciência, a Economia Política. Como “ciência humana” não tinha duas das características das ciências exatas – a experimentação e a previsibilidade. Mas utilizando o método matemático e tendo um objeto preciso (a produção da riqueza) é uma ciência. Seus fundadores mais famosos são Quesnay (1694-1774), David Ricardo (1772-1823) e Adam Smith (1723-1790).
Sendo uma ciência, a Economia Política visa a encontrar e formular leis. Assim como há as leis da física, da biologia etc., há as leis de funcionamento da economia. São leis universais para as sociedades humanas, isto é, valem para todas, variando conforme o seu grau de produção material.
A mais elementar das leis da Economia Política é a da “oferta e da procura”, também chamada “lei da produção de valor”. Quanto vale um produto? Por que um é mais caro que o outro? A primeira resposta é: se a oferta dele é maior que a procura, o preço cai; se é menor, sobe.
Uma segunda lei básica da Economia Política é contraponto da primeira: riqueza e pobreza são função uma da outra. Assim como os sinais + e -, uma não existe sem a outra (para generalizar função, a álgebra diz que x >< y, isto é, qualquer coisa quando não existe isoladamente é função de outra. Também se usa a notação f.X¬Y). Só há riqueza se há pobreza, uma se refere à outra, as duas estão em função.
A descoberta
Não há um mundo da riqueza e outro da pobreza: eles são um só. Essa descoberta é comparável às grandes descobertas da física, da astronomia, da biologia etc. No fim do século XVIII, pensadores faziam a seguinte pergunta: o que torna um país (ou uma pessoa) rico e outro pobre? Ou por outra: qual a razão da riqueza das nações? A resposta, como nas ciências exatas, estava encoberta por pressuposições e preconceitos (por exemplo, os ricos são inteligentes, os pobres burros; os europeus são diligentes, os não-europeus são negligentes etc.,etc.).
A resposta encontrada foi: rico é quem oferta (vende) produto de alto valor; pobre é quem oferta (vende) produto de baixo valor. Por exemplo, sapato é de alto valor, couro para sapato é de baixo; açúcar é de alto valor, cana de açúcar é de baixo, etc.,etc.
Essa foi a primeira descoberta da Economia Política: quem vende matéria-prima (commodities) e compra industrializados empobrece; quem compra matéria-prima e vende industrializados, enriquece. É a razão de haver países pobres e países ricos. Se nota aqui a vigência das duas leis elementares: a da oferta e procura; e a da função.
Daí decorreu a seguinte pergunta: e dentro de um país, como se explica que haja ricos e pobres?
Aplicando as mesmas leis, se concluiu: aquilo que os pobres vendem tem baixo valor; aquilo que os ricos vendem tem alto valor. Ou por outra: pobre é aquele cuja mercadoria tem baixo valor; rico é o contrário.
Mas qual a mercadoria do pobre – aquela que ele põe à venda no mercado? Sua força de trabalho. Assim, outra definição de pobre, formulada há apenas 200 anos, é: aquele que só tem uma coisa para vender, a sua força de trabalho.
Até o fim da Idade Média europeia não era assim. Os pobres tinham outras coisas para vender: fruto, caças, leite, peles, objetos artesanais, filhos, mulher etc. Com a mecanização da produção, não sendo proprietários das máquinas, complexas e caras, só lhes restou uma coisa para vender: o próprio trabalho (mão-de-obra). Por exemplo: só umas poucas pessoas podiam ter máquinas de fazer pano; as outras acabavam superadas (falidas) porque produziam pano em ateliês domésticos. Com essa concorrência, os ateliês domésticos, artesanais, fecharam. Essa falência coletiva é um dos capítulos da Economia Política – a origem do mercado de trabalho, isto é, do “local” onde se vende e compra trabalho. É um mercado livre: vende quem quer, compra quem pode. O trabalhador agora será livre, não é mais servo ou escravo. Se ele não quiser vender seu trabalho, apelará para o crime ou a mendicância para viver. Ou ainda, como no Brasil, para o trabalho de doméstica, mais perto da servidão antiga (às vezes bem remunerada) que do trabalho livre. A empregada oferece trabalho morto, não gera lucro ao patrão.
A mais-valia
A principal descoberta da Economia Política só foi feita, porém, na segunda metade do século XIX: a mais-valia. Já se conheciam a lei da oferta e da procura; e a da função riqueza/pobreza. Haveria alguma lei mais elementar do que essas? Sim. Era a lei (ou teoria) do valor, pressentida, mas não formulada ainda, uma lei quantificável – isto é, deduzível de quantidades e não de especulações. Estudando relatórios de engenheiros de fábrica, na Inglaterra, Karl Marx mediu o valor do trabalho. A quantidade de trabalho gasta na produção de um objeto (quantidade essa medida por horas de trabalho) dava o seu valor. Por exemplo: um objeto que custou três horas de trabalho vale mais que um que custou uma hora; e assim por diante.
Essa lei vigorava também sobre um objeto especial: o trabalho humano. Por exemplo: plantar cana custa menos trabalho que transformá-la em açúcar, logo o trabalhador de cana receberá menos por seu trabalho que o refinador de cana. (Mais tarde, se viu que a questão não era só a quantidade de tempo de trabalho gasta que definia o valor, mas também o conhecimento. Por outras palavras, o conhecimento agrega valor ao trabalho).
Chegou-se, enfim, a outra descoberta: quem compra trabalho (os capitalistas) vende seu produto (as mercadorias) por um valor acima do que ele lhe custou. Essa diferença ganhou o nome de mais-valia. Mais-valia é a diferença entre o que custou o trabalho para fazer uma coisa e o preço pelo qual esta coisa é vendida. Qualquer coisa. Uma condição histórica para a mais-valia aparecer foi o nascimento do Mercado, esse lugar abstrato onde cada um vende o que tem. O preço é dado por duas leis: a da oferta e procura e a da mais-valia. A segunda é mais forte que a primeira. (Há uma distinção, que se deve notar, entre valor e preço. O valor já está dado quando uma mercadoria é produzida; o preço vem da oferta e procura deste objeto já valorado no mercado).
A natureza da pobreza e da riqueza
As pessoas (e países) que acumulam mais-valia são ricas. As que vendem trabalho, possibilitando a mais-valia, são pobres.
Mas não é tão simples assim.
Sempre houve pobreza no mundo, mas seria mais apropriado chamá-la de privação. São exemplos, os povos da floresta, as vítimas de falta de colheita ou desastres ecológicos, de guerra de conquista etc. Já a pobreza moderna ocorre no interior do Sistema Econômico, é natural (por assim dizer). Seu melhor nome é: desigualdade econômica. Ou desequilíbrio social. É como um tanque cheio de água: se abaixamos o tanque de um lado, a água sobe do outro. Ou de uma gangorra, quando um lado sobre, o outro desce.
A renda, o lucro, o “exército industrial de reserva”
Renda é aquilo que se ganha. Necessariamente não vem da mais-valia. Pode ser por herança, por serviço prestado fora do mercado, por doação etc. Exemplo: quem poupa tem renda (se aplicar essa renda em algum negócio, a transforma em lucro). Lucro é a apropriação da mais-valia. Só se lucra fazendo uma operação de mercado, isto é, comprando e vendendo alguma coisa. A fórmula do lucro é: D-M-D1 (Dinheiro, mercadoria, dinheiro aumentado). Aparece aqui outra definição de rico: é o que tem renda ou lucro; e de pobre: é o que não tem renda e/ou não lucra.
O sistema de que o lucro é o DNA foi chamado de capitalismo. Ele é praticamente invencível – por várias razões. Para se manter ele precisa da chamada “taxa média de lucro”, ou seja, um número abaixo do qual entra no vermelho e se desagrega. A lei da oferta e da procura ajuda a manter essa taxa: se houver poucos pobres vendendo trabalho, os salários sobem e a taxa média de lucro baixa; se houver muito pobre vendendo trabalho, os salários descem e a taxa sobe.
Assim, para manter a taxa média de lucro, o sistema precisa sempre de uma certa quantidade de trabalho ocioso. Em países como o nosso, existe mesmo a “feira de trabalhadores”: num local os pobres esperam que venham contratá-los; se são muitos, os contratados ganharão menos; se são poucos, os contratados ganharão mais.
O que interessa, portanto, ao comprador desse trabalho é que haja mais trabalhadores sem trabalho ou com baixa qualificação para determinado trabalho, assim ele lhes pagará menos, aumentando a taxa média de lucro. Toda economia precisa, assim, de alguma uma taxa de desemprego permanente.
Se vê aqui, claramente, que a pobreza está em função da riqueza, e vice-versa. E que não há dois mundos, mais um só. E que, portanto, o desejo de um mundo sem pobres é fantasia, ou delírio – uma fabulação para encobrir uma fratura.
O caso do Brasil
O Brasil é pobre em relação aos países ricos: produziu, ao longo de 500 anos, mais-valia para os países ricos. (A rigor, não produziu só mais-valia, mas também foi saqueado em suas riquezas naturais pela violência direta dos colonizadores; doação de suas elites, etc.).
Mas, no seu interior, há ricos e pobres. Se replica aqui, entre brasileiros, a função riqueza/pobreza internacional.
Os brasileiros pobres de hoje (os que vemos a todo instante) descendem de escravos ou servos. Nossos antepassados não se tornaram pobres como os europeus, arruinados pela concorrência com os donos das máquinas. Já chegaram aqui como despossuídos – isto é, não possuíam sequer mão de obra para vender. Eram vendidos por inteiro: essa é a melhor definição de escravo: o que não tem mão de obra para vender num mercado livre. Não produzem mais-valia, são “roubados” antes. Daí o sonho do escravo: ser livre para vender sua força de trabalho, e não a sua pessoa.
A escravidão é, assim, a primeira origem da pobreza no Brasil. Terminada a escravidão (há cerca de 100 anos), os descendentes de escravos compõem um exército industrial de reserva. A taxa média de lucro no Brasil sempre foi alta porque há sobra de trabalhadores vendedores de mão de obra, na maioria descendentes de escravos e servos.
Conforme a economia brasileira se desenvolveu (em conexão com a mundial, ou globalização), exigindo mais conhecimento que horas de trabalho, os pobres ficaram mais pobres. É que eles não têm qualificação para trabalhos complexos, que dependam de conhecimento (ler, escrever, em português e inglês, contar, operar computadores etc.). Isto é bom para os capitalistas (compradores de mão de obra) até certo ponto, pois se beneficiam da lei da oferta e da procura. A partir de um certo ponto, porém, é ruim, pois não encontram, no mercado, oferta de mão de obra qualificada. O lugar comum de que “quanto mais ignorante o povo é melhor para os ricos e políticos” não é completamente verdadeiro.
Como acabar com a pobreza
Se pobreza e riqueza fossem mundos separados, cada uma poderia morrer sem arrastar a outra para o túmulo. As tentativas de acabar com a pobreza através da eliminação dos pobres levaram a páginas cruéis da história humana.
Como riqueza e pobreza estão em função só houve, até hoje, duas possibilidades de fazer isso: pela revolução social (que levou a becos sem saída, como os da revolução soviética e cubana, por exemplo); ou agregar valor ao trabalho, isto é, aumentar o seu preço no Mercado. Isso se fez, nos países ricos, pelo investimento em conhecimento (universalização da escola pública, técnicas de automatização, especialização, cientifização, toyotização, revolução digital etc.), como na Alemanha e Japão, por exemplo. O valor do trabalho dos pobres não se mede ali, apenas, pela quantidade de trabalho, mas pela qualidade desse trabalho: em menos horas se produz mais. Assim, país rico é também país instruído.
Para que serve o Estado
O Estado só nasceu nos tempos modernos porque só então houve necessidade de organizar o mercado de trabalho. Para os capitalistas era preciso um mantenedor da ordem (pobres e ricos em boa e respeitosa relação), o Estado era isso para eles. Os pobres o aceitaram como forma de negociar seu trabalho em condições menos selvagens (direitos trabalhistas etc.); o Estado era isso para eles.
A civilização que o capitalismo criou, do século XVI para cá, encobriu essa função do Estado com argumentos morais (a ética do trabalho), psicológicos (medo à polícia, medo a castigo pós-morte, etc. etc.) e existenciais (a Tecnologia resolverá todos os nossos problemas, só a droga nos faz feliz, a Organização é tudo etc,etc.), E deu nova vida a princípios das civilizações anteriores, como a honra. Honra é uma disputa por quem é mais dadivoso, independente da condição social, e seria mais lógica numa economia de doação ou de troca, como a medieval.
Em suma
Não há pobres sem ricos, e vice-versa. Para os ricos, acabar com os pobres (ou a pobreza) seria matar a galinha de ovos de ouro.
O DNA do sistema em que vivemos é o lucro, não a renda.
O lucro, ou mais-valia, é “natural”, não se obtém pela força, mas pelo jogo do Mercado.
A desigualdade econômica entre os países replica a desigualdade interna a eles.
Nossa civilização criou as fábulas que encobrem a razão da riqueza/pobreza, descoberta pela Economia Política.
O desaparecimento dos pobres, onde se conseguiu, foi pela revolução social ou pelo aumento do valor da mercadoria trabalho.
A função principal do Estado moderno é assegurar a ordem em que os vendedores de trabalho o vendem sempre por um valor menor do que o oferecido pelos compradores no mercado.
O Mercado é o lugar abstrato e sacralizado onde se dá essa compra-e-venda.
15 de dezembro de 2010