Artigo

A história como genealogia

por Pablo Dias Fortes

Génos é um termo proveniente do grego, cujo significado (‘origem’) vai impregnar algumas palavras conhecidas, como em ‘gênese’ e ‘genealogia’. Quando se trata de evocar o campo da história, é este o sentido, por relativa contiguidade, que costuma prevalecer. Neste caso, uma das principais tarefas do historiador seria elucidar, a partir do suposto ‘encadeamento racional’ dos fatos, o elo que liga presente e passado, alcançando, enfim, aquilo que todos gostariam de lembrar.    

Geena é outra expressão de raízes antigas, cujo significado quer dizer, grosso modo, ‘depósito de lixo’. A palavra designava um local da antiga cidade de Jerusalém, onde servira inicialmente para sacrifícios humanos. Logo depois, passou a ser usado como destino de toda sorte de dejetos e detritos, de todo tipo de sobras e restos (SANTOS, 2009). Era, em suma, aquilo que todos gostariam de esquecer.  

Neste texto, gostaria de explicitar melhor a diferença. Trata-se, numa palavra, de formular e sustentar uma hipótese sobre o pensamento do historiador Joel Rufino dos Santos, o qual, em minha opinião, constituiu-se, ao contrário da busca pura e simples de causalidades históricas, como uma autêntica geenalogia:

O que chamamos História do Brasil é uma cidadela nítida e higienizada que esconde de si própria o seu monturo: os fracassos de cada geração que se foram acumulando a certa distância. Dali se desprendem miasmas, se avista um fogo baixo e teimoso, mal encoberto. (SANTOS, 2009, pág. 30)   

Ora, o senso comum costuma imaginar o historiador como uma espécie de guardião da memória coletiva, o zelador dos fatos dignos de lembrança. Não lhe ocorre, portanto, que é a vontade de esquecimento, enquanto princípio dialético dessa mesma memória, o verdadeiro ‘objeto crítico’ (do latim obiectum, ‘atirado adiante’) da história. Nesta última, mais do que a razão lógico-dedutiva celebrada pela epistemologia moderna (ou seja: a ‘demonstração científica’), estaria em jogo também outra modalidade de reflexão: o pensamento irônico. 

Sob esse aspecto, convém dizer que, em termos filosóficos, ‘ironia’ não é um mero sinônimo para ‘sarcasmo’. Consiste, isso sim, em uma postura intelectual radicalmente antidogmática, isto é, uma ética metodológica aberta para a própria ‘insolubilidade teórica’ de certos eventos. Na tradição do chamado pensamento ocidental, é o próprio Sócrates, ‘pai da filosofia’, quem representa pela primeira vez esse caminho. Suas intervenções não visavam à simples glosa satírica dos seus interlocutores, mas a levá-los a deparar-se frequentemente com determinadas aporias (do grego aporia: ‘impasse’, ‘incerteza’). Com efeito, não é outra a perspectiva de Joel:   

Quando o Tiradentes, Herói da Independência, foi acuado pela polícia (de quem seria patrono depois), vendeu um escravo para fazer caixa; Nina Rodrigues defendeu do código penal, na Salvador do fim do século XIX, uma negra, de cuja inferioridade racial estava certo; João do Rio, após a proclamação da República, constata, numa enquete, que a maioria dos negros da Detenção é monarquista; em Canudos, um líder de massas fundou uma cidade comunista em nome de São Sebastião; o mais considerado poeta negro, Cruz e Souza, se devotou à branquitude (...). A lista das interpelações incontornáveis (...) não tem fim. De lá emanam gases e fedor sobre a cidade. (SANTOS, 2009, págs 30-31)

O leitor atento às considerações feitas até aqui terá notado, sem maior dificuldade, a proximidade que tal perspectiva acaba também assumindo em relação à psicanálise. O motivo é compreensível. Afinal, a descoberta do inconsciente não significou apenas uma ferida mortal no coração da antropologia iluminista (a imagem de uma ‘inteligência’ inteiramente transparente para si mesma), mas a revelação do caráter intrinsecamente social do fenômeno, logo também de sua íntima textura histórica.  

É claro que essa revelação não sugere que o trabalho do historiador se confunda com a prática psicanalítica, mas que pouco se pode dizer de historicamente interessante sem o ‘diálogo’ com um campo que tão fundo tem mergulhado nas determinações intersubjetivas do psiquismo humano. É essa sociedade fatal, mais que qualquer outro ‘fato social’, que permitirá então ao historiador escapar ironicamente da sociologia ‘clássica’, situando-se diante de conteúdos que, de outra forma, apresentam-se como o triste sintoma de um recalque. Em outra instigante passagem sobre a História do Brasil, escreve Joel: 

O que chamamos, tradicionalmente, por este nome – o que nos ensinam nas escolas, o que vemos nos museus, o que ouvimos nos discursos cívicos (...) – é um desejo de evolução histórica, o desejo das elites. A imposição desse desejo como realidade é um aspecto da sua dominação sobre o outro. Dele escapam, sem cessar, fatos e episódios que não se encaixam na linha evolutiva que vai do Descobrimento à unidade nacional. Não são singularidades simples, mas expressões de desejos que vão se acumulando à margem da linha evolutiva, como borra ou resto. Como desejo, exigem satisfação, são singularidades exigentes. Desejo, enquanto categoria específica da psicologia freudiana, é uma falta; transplantada para o campo da história, aparecerá como resto ou sobra. (SANTOS, 2009, pág. 89)

Como se vê, não é difícil supor, aqui também, alguma vizinhança com as famosas teses Sobre o Conceito de História, de Walter Benjamin, particularmente no que concerne à crítica deste último ao caráter ‘vazio’ e ‘homogêneo’ que a modernidade, entorpecida pelo mito do progresso, atribuiu ao tempo histórico. Ocorre que, em Joel, a célebre fórmula ‘escovar a história a contrapelo’ não aponta para nenhuma redenção presumida, esfera do metanarrável, de cuja ‘verdade’ não toma nota a ironia. 

Curiosamente, isso terminará exigindo de Joel uma outra cumplicidade com Benjamin. Trata-se, a rigor, do papel que ocupa o literário no processo de reflexão histórica. Literatura, que fique claro, não como inflexão diletante do historiador que ‘transcendeu’ a história, e sim como signo de algum tempo perdido (esse o evidente sentido do encanto benjaminiano por Proust), o ‘lugar’, enfim, no qual a própria vida é medida pelo que nela se tornou esquecido.  Mais uma vez Joel:

No Brasil, somente a ficção desvela a vida do povo – entendido como aquela parte da sociedade que não fez a passagem para o padrão de acumulação moderno e capitalista, a humanidade que ‘se vira’. A literatura seria, nesse caso, a verdadeira história do pobre – assim como a música popular, o enredo das escolas de samba, a arquitetura e a decoração dos mocambos, a literatura oral etc. – porque o institui como sujeito desejante.  Na historiografia brasileira, os pobres não se encontram como sujeitos, mas como coisas, emblemas, espécie de lixo pedagógico para exaltação, por contraste, da necessidade de ordem e progresso nacionais.  (SANTOS, 2009, pág. 110-111)

Quem quer que se disponha a ler os ensaios de Joel, poderá observar facilmente a riqueza de exemplos com os quais ele ilustra essa tese. Dentre eles, cito apenas um, o Bumba-meu-boi, o ‘folguedo popular mais universal do Brasil’, na valiosa percepção de Mário de Andrade. 

Ora, o enredo do folguedo em questão, não obstante suas variações regionais, é simples. Catirina, uma escrava grávida, deseja comer língua de boi. Isso leva ao seu marido, Pai Francisco (ou Mateus), a sacrificar um dos animais do senhor. Após o desejo satisfeito da mulher, ele reparte os despojos entre os companheiros e foge. A causa? O animal morto era, por azar, o preferido do senhor. Este manda índios amigos à sua procura. Pai Francisco é então capturado e castigado. Mas o verdadeiro ‘perdão’ (razão da festa) só viria com a ressurreição do bicho, depois de um ritual mágico. Joel:

Quais são os tempos desse enredo?  O desejo da negra, a repartição dos despojos, a fuga e captura por índios amigos, o castigo, a culpa e a purgação do escravo, a ressurreição do animal totêmico após a pajelança. O elemento fundador do Boi, seu tempo forte, porém, é o desejo da negra. Ao reconhecer esse desejo, o negro (Mateus) institui a mulher (Catirina) e a si próprio como humanos, coisa impensável para o senhor que os vê como coisa, instrumentum vocale no direito da época. Os negros escravos que ‘inventaram’ essa história capaz de atravessar séculos se reconheciam, implicitamente, como desejantes e a essa luz se representavam a si e ao amo – que se opunha a realização do seu desejo. Não admira que os intelectuais orgânicos da sociedade escravista – padres e bispos – exigissem do Estado a repressão aos folguedos de Boi. Não apenas a ordem pública corria perigo, mas a própria ordem social e, em última instância, não apenas esta mas a própria ordem do mundo. Emergindo da África profunda, um espectro rondava a sociedade escravista brasileira: o Boi Ápis. (SANTOS, 2004, pág. 162)

Num tempo em que jovens pobres e pretos são surrados e amarrados em poste como forma de ‘justiça com as próprias mãos’, e no qual o racismo vai despontando, nas transmissões televisivas de futebol, como o verdadeiro espetáculo da competição, é bom assinalar que o ‘passado’ da sociedade escravista não implica, obviamente, a abolição dos seus vestígios na configuração atual das mentalidades. A escravidão, costuma frisar Joel, é o primeiro de nossos fatores de ‘longa duração’, na acepção dada ao termo por Fernando Braudel. Isto é, são ‘os gestos repetidos, as histórias silenciosas e como esquecidas dos homens, tudo o que teve peso imenso e rumor quase imperceptível’ (SANTOS, 2004, pág. 162, o grifo é meu)                

Do ponto de vista da economia política, ‘pobre’ é aquele que, perante o mercado, dispõe apenas da sua própria força de trabalho para vender – o alienado dos meios de produção, na teoria marxista. Considerado pelo discurso histórico, ganhará, porém, ainda outro significado: é aquele cuja voz, enquanto índice de seu modo particular de interagir com o mundo, já foi também expropriada. Nesse sentido, só pode ‘sobreviver’ como resto ou sobra. No entanto, é somente na literatura, espécie de arquivo irônico no qual é possível a ‘anamnese do esquecimento’, que ele adquire o seu mais expressivo estatuto ontológico: pobre é, afinal, aquele que possui o corpo do desejo sobrante. Resume Joel: ‘Desejo sobrante seria uma potencialização de tudo aquilo que se acumulou como resto ou borra, ou geena, ao longo da história brasileira.’ (SANTOS, 2009, pág. 31)

No Brasil de hoje, há quem ainda defenda que vivemos uma democracia racial. Para estes, não importa a contraevidência dos números, uma vez que, no final das contas, o que de fato existe é apenas um ‘problema social’ (nada mais ideológico!). Em tais circunstâncias, creio que a maior contribuição de Joel consiste justamente em sua visão irônica e geenalógica da história, invertendo muitas vezes o ‘sinal’ da equação. Neste caso, caberia mostrar, como tantas vezes faz Joel, que o negro tem sido, antes de mais nada, na história brasileira, o próprio lugar social da pobreza.  

Nesse contexto, seria oportuno imaginar igualmente o quanto esse modo de pensar a nossa sociedade pode abrir outras possibilidades de ironizar a história, ora especulando sobre novos nexos estruturantes de nossa equívoca identidade, ora convertendo-a politicamente em ação cultural. No país que se orgulha da feijoada e da antropofagia, já está na hora mesmo de aprendermos como aproveitar melhor as sobras. Antes que se acumulem como mais restos ainda.           

Referências Bibliográficas:

 BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. Obras Escolhidas – V.1 (8ª.edição). São Paulo: Brasiliense, 2012.   

SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do Social – Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres. São Paulo: Global, 2004.    

______  Assim foi (se me parece): livros, polêmicas e alguma memória. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

______  Quem ama literatura não estuda literatura: ensaios indisciplinados. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

______ A banheira de Janet Leigh. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

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