Publicação original: 2005por Joel Rufino dos Santos
O Boi e o Sentinela da Liberdade se encontraram pela última vez na manhã de 1° de junho de 1838. O Bumba-meu-boi é o auto dramático mais antigo e universal do Brasil. A negra escrava Catirina engravidou e tem desejo (veja só) de comer língua de boi. O marido, Mateus (ou Pai Francisco), para atender, mata um boi da fazenda. Distribui carnes e vísceras entre os demais trabalhadores - tudo com cantorias, danças e piadas. E foge.
O senhor manda o capataz com um bando de índios amigos atrás. Mateus vai para o tronco. Curandeiros, pajés e doutores confereciam, mas quem ressucita o boi, com lavagem no rabo, é o próprio Mateus. Até o ano seguinte: de novo o desejo da escrava, o roubo, a morte, a ressurreição.
As autoridades e a Igreja implicavam com o Boi. Os liberais defendiam. Defendiam nossa inserção na economia mundial (abertura dos portos), nacionalização do comércio, industrialização, libertação dos escravos e, por vezes, a república e o socialismo. Era o momento histórico (1808-1831) da Independência: de um lado, pés-de-chumbo (portugueses); de outro, cabras (brasileiros). Quem era só pela abertura dos portos, se poderia dizer de direita, quem queria mais que isso, de esquerda.
Ponto final
Cipriano Barata, o Sentinela da Liberdade, foi aguerrido militante da esquerda liberal. Se bateu pelos direitos da mulher, humanização dos presídios, liberação da maconha e dos cultos afro-brasileiros; anistia a presos políticos, tribunal do júri e voto universal. Em Lisboa, denunciou que nos abrigos para menores da Bahia o jantar era uma papa de pão com cachaça que enganava a fome e fazia dormir.
Levando embaixo do braço a Declaração do Homem e do Cidadão (Revolução Francesa, 1789), entrou em tudo quanto foi revolução entre 1789 e 1848: a dos Alfaiataes, a dos Padres, a Constituicionalista, a da Confederação do Equador e a da Abdicação.
Cadeeiro véio, escapou da prisão perpétua, mas puxou dez anos ao todo. Batizava seus pasquins conforme a cadeia: Sentinela da Liberdade, Sentinela da Liberdade na Guarita do Quartel General de Pirajá. Encerrou a vida de jornalista (1834) por onde começou: Sentinela da Liberdade em sua PRimeira Guarita, a de Pernambuco, onde hoje brada alerta! .
No fim, Cipriano não tinha nada. Só popularidade. Foi morar em Natal numa meia-água. Havia uma brincadeira de Boi no bairro. Perto do São João, o Boi saía pelas ruas ensaiando. Os padres esmurravam o púlpito, davam penitências a quem participasse da brincadeira sacrílega. Lá ia o Boi indiferente pelas ruas da Ribeira, se cobrindo de pó.
Disseram ao mestre que o velho Sentinela talvez não passasse daquele dia. Antes de recolher, o mestre fez o Boi passar pela casa de Cipriano. O revolucionário acordou com a matraca, o tambor-onça e os pandeiros. Chegou à janela e viu no lusco-fusco o Boi se movendo, os índios, a Catirina, o Pajé, Mateus, O Amo. Foi a última vez que se encontraram.
tem um pouco de imaginação aí, nesse final. Sem ela, também não se faz História.