Publicação original: 2013por Joel Rufino dos Santos
Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, publicado em 1980 (Nova Fronteira) é um dos melhores romances que li. Ela se põe na pele do imperador romano Adriano e faz o balanço de sua vida, de seu poder imenso, de suas crueldades, de seu amor por um efebo bitínio, Antínoo.
Desenganado pelos médicos e curandeiros (Adriano tinha hidropisia cardíaca) ele se prepara pra morrer.
Uma pitonisa garante ao imperador: se uma pessoa que vos ama morrer, os anos de vida dessa pessoa vos serão acrescentados. No dia seguinte, Antínoo é encontrado morto num dos tanques do Nilo.
A Grécia, o Egito, a Itália, a Pérsia, o norte da África, todo o mundo antigo está repleto de estátuas do suicida por amor, mandadas erigir pelo inconsolável imperador filósofo.
Alternando angústia e serenidade, Adriano se faz perguntas cruciais. Existe alma? Por que tantos acreditam nela? Em que parte do corpo ela reside? Em que momento abandona o corpo apodrecido pela doença ou a velhice? “Não me sentia tão convencido a esse respeito [existência da alma]; já que o sorriso, o olhar, a voz, essas realidades imponderáveis tinham sido liquidadas. Por que não a alma?”
Um homem de dois mil anos atrás se debatia nessas dúvidas imensas. No entanto, dois mil anos depois, a maioria dos seres humanos continua a acreditar haver alma – é uma das bases da religiosidade. Só que hoje parece claro: crer em alma é questão de fé. Quem não tem fé, pode se apoiar na ciência, especialmente na neurobiologia, na genética e na psicologia: o que chamamos alma é o eu. Cada pessoa é um eu “produzido” por sua história única, que se reflete na mente por essa consciência de ser eu. Ninguém é eu. Essa consciência se extingue com a morte.
A cosmologia, mostrando a absoluta insignificância do homem diante de bilhões de galáxias, cuja luz viaja milhões de anos-luz para chegar aqui, também dificulta acreditar em alma – salvo como um eufemismo para o eu.
Para não parecer ao leitor que me meto a filósofo, como Adriano, conto como foi minha morte.
Gerd Borhein, que ensinava filosofia, era meu colega na UFRJ. Uma madrugada Gerd teve um infarto e morreu. De manhã, seu criado começou a ligar para amigos. Um colega nosso, no meio de uma aula, atende ao celular. “Aqui Joel o professor morreu”. Correria. Suspendem as aulas imediatamente. Nomeiam uma comissão para o meu féretro.
A notícia chega à Mangueira. Um diretor pega a bandeira da escola, “O professor não vai se enterrar sem o nosso pavilhão”. Vai a um, dois, três, quatro cemitérios. Só falta o israelita. “O professor era judeu, quem diria, não me contou”. Lá também não havia qualquer Joel a enterrar. Com a bandeira sob o braço, o amigo liga pra minha casa, cheio de dedos. Atendi. “Não, não morri, Amauri”. Ate correr a notícia em contrário, de que o morto era o Gerd, e ficasse claro que a primeira pessoa ao receber a comunicação não “ouviu” a vírgula – “Aqui Joel, o professor [Gerd] morreu”, estive morto. A vida é estranha. Meu eu acabou por uma vírgula.