Artigo

Alguém tem que trabalhar no Sítio do Pica-Pau Amarelo

por Joel Rufino dos Santos

A história do negro no Brasil é a história do trabalho. Em tudo o que produzimos, exceto o pau-brasil, ele foi o fazer, sozinho ou ajudado pelo índio e o branco pobre. Coleta florestal, açúcar, fumo, pecuária, minerais, algodão, borracha, café, cacau, indústria, comércio.

Muitos brasileiros sabem, ou desconfiam, que o negro foi também o que construiu cidades, abriu caminhos, transportou cargas, levou recados, acalentou crianças, fez comida, curou, benzeu, cozinhou, lavou e passou. Foi feitor, soldado, capanga, pau-mandado, carrasco - como aquele Capitania, que enforcou Tiradentes.

No tempo da Colônia, não havia engenho sem seu rancho. Como rancheiras eram mulatas, há quem acredite até hoje que, de nascença, mulata é boa de cama. "Não há como a mulata", etc. Negras faziam comida, davam de mamar, davam remédio, catavam bicho-do-pé, contavam histórias em noites de pavor. A negra foi parteira, o negro coveiro. Ditado daquele tempo: "Quem dá os beijos dá os peidos."

No Sítio do Pica-Pau Amarelo todos se divertem e aprendem, Tia Nastácia trabalha. Além da comida diária, faz canjas em noites frias, canjicas no São João, bolos fuça-fuça nos aniversários. A família extensa (só falta o pai) vai conhecer a Grécia. Se perdem no palácio do Minotauro. Cadê Tia Nastácia? Percorrem  corredores e corredores. Dão de cara com o monstro, gordão, três papadas caídas. Só se mexia pra tirar bolinhos de polvilho de um cesto, que Nastácia fritava numa frigideira maior que um tacho. Escapam:

"Sim, você está salva, Nastácia, e vai voltar para o sítio, e continuar por toda a vida a fazer bolinhos para nós. Vê como é bom saber fazer uma coisa bem feita?"

Injustiça. Nastácia fizera, pelo menos, outra coisa bem feita: a própria Emília, com pano recheado de macela, cabelos grossos, curtos, negros, olhos de retrós. Emília pegou a falar, contestava ordens, discutia regras. Um padre escreveu um livro para demonstrar que a perguntadeira era comunista. Saiu das mãos da negra.

DO FEIO PASSAREI AO BONITO

Brasileiros sabem, ou desconfiam, que o negro não foi só fritador de bolinho. Se foi o principal ltrabalhador, deve ter sido também o principal criador de cultura.

Um instrumento de tortura de três paus se chamava, em Roma, tripalium. Daí vem travail (francês), trabajo (espanhol), travail (inglês) e trabalho. O primeiro casal foi expulso do Paraíso:

"Do suor do teu rosto comerás o teu pão."

Mulheres fariam com dores trabalhos de parto. Marx mediu a fadiga do trabalho operário para fixar o valor da mercadoria. Nada bom.

Lavro a terra, em latim, era colo. No particípio passado, lavrado, cultus. No particípio futuro, o que há de cultivar, culturus. Daí vem a palavra cultura. Cultura: pensamento e sonho daquele que trabalha a terra. Quem trabalha faz a cultura. Do que faço hoje nascerá o que farei amanhã. Do feio passarei ao bonito. Do concreto ao abstrato. Do material ao imaterial

Mas pode também ser o contrário: do imaterial (cultura) ao material (trabalho). Tudo bom.

A FAZEDORA DE MONSTROS

O médio São Francisco, no tempo das barcas, dava medo à noite. Monstros informes saltavam para devorar passageiros e mercadorias. Caboclos d\"Água, Cachorrinho d\"Água, Minhocão, o Sem Nome. Capitães punham na proa criaturas de madeira horripilantes: monstro contra monstros. Lá por 1920 as barcas foram substituídas por naviozinhos a vapor, os monstros e contramonstros sumiram. Em 1950, não havia mais fazedores de carrancas. Aí, em Petrolina, apareceu Ana das Carrancas (1923-2008), paneleira desde criança.

Tirava o barro no leito do rio, deixava curtir três dias, separava na enxada em grandes pedaços, catava o cascalho, amassava. Com meia hora para comer, trablhava das seis às vinte e duas. Prontas as carrancas, enfileiradas no quintal, pegava um pau e furava bem feitinho nos olhos. O marido, Zé da Feira, era cego.

"Foi o barro que me deu o direito. Daí eu não me separo dele pra coisa nenhuma, porque eu amo aquilo que ama a mim. Tenho calo nos dedos, mas me sinto feliz. O barro é um caco de mim. É o meu diploma. Mas seu sei quem inventou carranca foram os africanos."

A COMIDA QUE INVENTOU O BRASIL

Gostamos de acreditar que na casa-grande se comia a parte nobre do boi (ou do porco), e as sobras (orelha, rabo, chispe,), cozinhadas pelos escravos, num panelão, viraram a feijoada. Uma boa história, mas improvável. A norma brasileira foi subir da senzala para a casa-grande.

Cozinheiras negras das casas-grandes não deixavam sobrar nada. A mistura de carnes, legumes (como o jerimum), folhas (como a couve) e feijão, tudo cozinhando junto, era costume geral. O modelo era o cozidão ibérico. Grão de bico no lugar de feijão. Este cozidão está no princípio: misturar tudo que se tem. O africano, na sua terra, separava pratos: angu de um lado, pirão de inhame de outro, caça ou pescado sozinhos. A feijoada que se come hoje em Angola foi levada daqui.

Feijões (o preto, o mulatinho, o fradinho, o manteiga etc.) eram comida popular, de escravos e não-escravos.  Comida só da senzala era feijão com toicinho, farinha, sardinha seca. Quando a situação ia bem, entrava um arroz, um naco de carne seca (jabá).

Esse regime mantinha fortes os trabalhadores para... o trabalho. Questão de custo benefício. É verdade que crianças negras pegavam vício de comer, escondido, cal de parede, beber óleo de lamparina. Se reincidentes, ganhavam uma boqueira de lata.

Quando a feijoada se difundiu, gostar, mesmo que não se goste, é sinal de brasilidade, como futebol, samba e mulata. A feijoada inventou o Brasil. E quem inventou a feijoada? Cozinheiras negras de fazendas e de rua -baianas de tabuleiro, quituteiras de freges, mercados e casas de pasto. Quando o gelo chegou (1834), passavam à notinha os pretos-do-sorvete. Imagine como sobremesa o mungunzá das pretas-de-fogareiro.

FAZEDOR DE HISTÓRIA

Gabriel dos Santos, filho de feitor com escrava, trabalhava em salina. A família morava apertado, alguém em sonho lhe mandou fazer uma casa só para si.

Construída, este alguém lhe disse que a casa devia ser de flor. Cobriu as paredes, a escada da frente, os moirões com flores de cimento, espelhos, cacos de louça, conchas, ossos, lâmpadas queimadas, ralos de chão, forminhas de bolo, faróis, um emblema da Volkswagenm um osso de baleia. Tudo que achou ou lhe deram por quarenta anos. De noite sentava para ver sua obra de caquinhos. Na sala um altar para livros, os retratos de Getúlio e de um sobrinho. Aprendeu a ler adulto, com um menino. Mantinha um diário:

"A Lei da Reforma Agrária foi assinada no dia 13 de março de 1964, pelo Presidente da República João Goulart no Rio de Janeiro às 4 horas da tarde."

Aposentado em 1960, desabafou:

"Não voltarei nunca mais ao trabalho. Até o fim Gabriel Joaquim dos Santos estou liberto apra sempre."

Evangélico, andava léguas para o culto. Um dia um anjo o mandou destruir a casa. Não conseguiu. Tombada pelo patrimônio histórico, pode ser visitada no distrito do Vinhateiro, São Pedro da Aldeia, litoral norte do Estado do Rio.

Contou para Amélia Zaluar, sua descobridora: 

"Esta casa não é casa, eu não quero que esta casa seja uma casa, isto é uma história, é uma história porque isso foi feito por pensamento e sonho."

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