Artigo

Alguns motivos para lembrar de Joel Rufino dos Santos, a solidariedade com os pobres e o reino deste mundo

Publicação original: 2015por Nicolau Bruno

Alguns motivos para lembrar de Joel Rufino dos Santos,

a solidariedade com os pobres e o reino deste mundo

 

            No mês de setembro de 2015, faleceu um genuíno intelectual orgânico brasileiro, negro e socialista, de Cascadura, nosso querido camarada Joel Rufino dos Santos, em decorrência de complicações durante uma cirurgia. Nascido no subúrbio carioca, em 1941, filho de família pernambucana, Joel foi um dos primeiros jovens negros a adentrar as arcadas da academia como assistente de Nelson W. Sodré no ISEB. Ali colaborou e se destacou no surgimento do movimento da "História Nova do Brasil". Militante do PCB no golpe militar, sua atuação lhe rendeu a primeira prisão e exílio na Bolívia e uma breve carreira profissional no futebol. De volta ao país clandestinamente, manteve-se organizado junto à ALN na luta contra a ditadura até que foi preso uma segunda vez e brutalmente torturado, caindo nas mãos do açougueiro Brilhante Ustra.

            Joel lembrava constantemente de seus companheiros mortos naqueles tempos. Em especial de Eduardo Merlino, seu amigo, assassinado com apenas 23 anos no DOI-CODI, ano de 1971. Ao falar do amigo lembrava um personagem de romance de A. Carpentier, Mackandal, eminente líder negro de São Domingo, na luta pela liberdade das colônias francesas. A personagem diante da morte, "(...) compreendia, agora, que o homem nunca sabe por quem padece e espera. Padece e espera e trabalha para pessoas que nunca conhecerá,(...) Mas a grandeza do homem está precisamente em querer melhorar o que ele é.(...) No Reino dos Céus não há grandeza que conquistar, posto que além tudo só existe hierarquia estabelecida, incógnita despejada, existir sem fim, impossibilidade de sacrifício, repouso e deleite. Por isso, esgotado de penas e tarefas, belos dentro de sua miséria, capaz de amar em meio das pragas, o homem só pode achar sua grandeza, sua máxima medida no Reino deste Mundo." [O reino deste mundo, A. Carpentier] A última vez que o vi, comovido escutei esta citação, onde figurava que a máxima medida é doar-se em vida ao outro, absolutamente desconhecido. O reino deste mundo de Joel Rufino era a terra brasileira e nela semeou os frutos proibidos da crítica, da consciência e da rebeldia. Seu último gesto, foi sua máxima medida, selou o contorno de sua efígie, reuniu todos os pedaços e o colocou junto aos arcanos da resistência popular. Uma semana antes de sua morte, quando voltava do trabalho deparou-se com uma turba de classe média promovendo o linchamento público de um jovem pobre e negro que havia cometido um furto num bairro de ricos. Joel interveio, colocando-se entre os linchadores e a vítima. Evitou assim que o rapaz fosse brutalmente espancado pela crueldade racista da honra das famílias de bem de Ipanema. Como lembraremos de Joel Rufino? Depois daquele dia, talvez quando pensarmos no paradigma histórico do intelectual de intervenção no Brasil, diante do avanço da medusa criptofascista que se projeta na paisagem, lembraremos também deste gesto de resistência. Em alguma medida, o instante petrificado neste breve momento, resume aquilo que Joel genuinamente foi. O sentido de sua vida parece cristalizar-se para a eternidade naquela intervenção e apresenta em síntese muito de sua fascinante personalidade. O significado profundo que tinha para si da solidariedade humana se revelava ali como epifania, a mais radical solidariedade com o Outro, colocar-se como fortaleza diante da mais medieval punição exemplar. 

            Porque Joel Rufino dos Santos deve ser lembrado pelos trabalhadores da cultura que buscam alternativas na luta social anticapitalista? Joel Rufino dos Santos foi, antes de tudo, um intelectual engajado com a causa da auto-emancipação dos pobres. Mas trazia uma maneira distinta de interpretar a questão específica desta categoria política de análise dos pobres e, ainda outra, mais singular quando falava de auto-emancipação. Em certa medida, desconstruía, com a noção que tinha dos "pobres", uma determinada visão ortodoxa da tradição marxista que já havia se estabelecido como uma fórmula mecânica, hegemonizando parte do pensamento da esquerda jurássica. Sua recusa em adotar a perspectiva de que o proletariado operário urbano constituía a "centralidade da classe", apontava para uma sensibilidade aguda que tinha da história do povo brasileiro. Joel exigia de nossa análise uma leitura histórica da realidade que fosse para além economicismo, seu socialismo tinha os pés plantados neste chão. Nos desafiava a garimpar as origens clandestinas e a genealogia oculta da luta de classes no Brasil. Um socialismo brasileiro, para Joel, deveria falar o dialeto das Tias baianas da praça onze, de Macunaíma, Grande Otelo, Cartola, Ney Lopes e Abdias do Nascimento. Semeava inquietude diante da miopia de uma esquerda que pensava o "pobre" como uma noção "imprecisa para análise política". Seu marxismo era como um movimento de capoeira, como um rabo de arraia: dançava e golpeava. Joel Rufino esmiuçava: "Pobres são os despossuídos, não de qualquer posse mas de território, de casa, de emprego (embora não de trabalho), de local (embora não de lugar),(...)  e enfim do próprio corpo (no caso dos escravos e servos da Colônia e Império)." ["Os pobres" in Épuras do social, 2001, p. 29] Em outro momento contrastava esta noção de pobre com a de despossuído. "Já se tentou despossuído como sinônimo de pobre, pois o termo assinala a condição do trabalhador sob a escravidão (4/5 da história brasileira). Todo negro brasileiro atual descende de despossuídos não só dos instrumentos de produção como do próprio corpo." Esta noção do pobre que trazia Joel buscava se nutrir na análise e na interpretação da cultura, da literatura, da música, dos tamborins e dos agogôs do Brasil e das suas festas populares. Sua Comuna de Paris era Palmares, seu A. Blanqui era Zumbi. Sua busca por uma esquerda crítica no Brasil, como ele mesmo dizia, se expressava no axioma teórico do samba "Sei lá, Mangueira"(H. B. Carvalho e P. da Viola), onde se ouve que a "vida que não é só isso que se vê: é um pouco mais." Neste "um pouco mais" escondia-se seu oceano crítico. Assim como dentro destes "4/5 da história brasileira" que esqueceram seletivamente entre as parênteses da história oficial e que agudo, persistente e irredutível apontava Joel com seus textos. Para os trabalhadores da cultura e para o vídeo popular ele resta como uma estrela da manhã que brilha negra no horizonte. Sua teoria permanece como a cruz dos ventos que sopra por um materialismo histórico que não teme a dialética das quizombas. Fica como uma alternativa dentro da perspectiva do pensamento crítico anticapitalista e aponta para a necessidade de desconstruir os lugares sociais separados entre intelectualidade e pobreza, desfazer velhas separações e descobrir novos usos. Para ele o maior patrimônio da cultura sempre esteve entre nossos becos e vielas, a noção de pobre historiciza e reposiciona o conceito clássico de proletariado. O único socialismo possível no Brasil virá da mais absoluta negatividade dentro da luta da classes, ali por onde classe é despertar e solidariedade  contra e além do Estado e do Capital. Esta alteridade solidária e insurgente da auto-organização dos pobres, no sentido do legado que ele nos deixou, levaremos conosco. Lembraremos de Joel porque esteve no reino deste mundo, com a ginga incansável, em defesa da humanidade.

 

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