Publicação original: 2011por Joel Rufino dos Santos
Apresentação
Anos atrás estava com Alberto da Costa e Silva numa reunião da Unesco, em Luanda. Depois de visitar um empório de venda de escravos, hoje museu, serviram-nos um almoço. Em uma mesa comprida, os anfitriões dispuseram iguarias da terra, na intenção carinhosa de nos seduzir agora pela boca nem era preciso, já que em Angola os brasileiros sempre nos sentiremos a gosto. Pois Alberto foi discorrendo sobre um a um dos pratos, apontando sua origem brasileira. Eu temi à toa uma descortesia - o autor de Das mãos do oleiro, não fosse diplomata de profissão, é um mestre delicado e sereno.
O termo se desgastou, mas o utilizo aqui na acepção de sujeito sábio e respeitoso que se responsabiliza por iniciantes em tal ou qual ofício _ e a atividade intelectual, quando levada a sério, não passa de um ofício, como o de ourives, o de alfaiate, o de diplomata, o de oleiro. Para os aprendizes não
se trata de servidão, ou submissão, embora isso ocorra eventualmente; nem imitação do estilo de alguém que se considera superior. Trata-se de uma iniciação semelhante à que se pratica na tradição dos orixás, por exemplo, crescimento acompanhado por alguém mais sábio e responsável, cujo valirnenro implica uma ética assumida. Não se ensina a quem não merece. Outra faceta da rnaestria é ir a terras estrangeiras e trazer de lá, como presente aos seus conterrâneos, um balaio de novidades insuspeitadas.
Mas Alberto da Costa e Silva é mestre de quê?
Em primeiro lugar da África. Em lingua portuguesa ninguém nos ensin/lOU mal, sobre esse continente, sua geografia, sua história, sua cultura do que seus dOIS grandes livros, A enxada e a lança (1992), A manilha e o libambo (2002), eu," ensaios e, parsos, como O vício da África e outros vícios (1989), Um Rio chamado Atlântico: a Ájrica no Brasil e o Brasil na África (2003) e Francisco Félix de Souza, mercador de escravos (2004).
Este Das mãos do oleiro seria mais bem classificado como coletânea de ensaios com dimensão histórica. Mesmo quando o tema são as viagens de Gilberto Freyre pelas colônias portuguesas, ou a identidade e patrimônio nacionais, ou uma resenha do clássico Coronel, coronéis, de Marcos Vilaça/
Roberto Cavalcanti, ensinam história - sem pressa ou empáfia. Como na desconstrução das iguarias angolanas daquele almoço.
História é uma disciplina militante, em si mesma, embora nem sempre o objetivo de sua militância esteja claro. Talvez se possa dizer apenas, com segurança, que diverte - no sentido de nos colocar na pele de outros homens de outros lugares, tornando-nos com isso mais humanos. Os ensaios de Alberto da Costa e Silva nos divertem, fazem-nos amar quem ele ama - Portugal, Piaui, o Rio de Janeiro antigo, as margens do Índico, a América do Sul, a ilha de Moçambique, Lagos ... No ensaio que fecha o livro, "A África e eu", Alberto conta como lhe nasceu e se desdobrou o amor pela África: a obra do adulto realizou a fantasia de menino.
Ora, para divertir é preciso talento. Na adolescência, intrigava-me que se apresentasse assim um autor: "Fulano é historiador e escritor." Historiador seria ipso jacto escritor. Com o tempo e as leituras, compreendi que não. Para compreender a distinção, sugiro ao leitor ler em voz alta alguns parágrafos do primeiro ensaio de Das mãos do oleiro, "O Atlântico, o Velho e o Novo Mundo": É bem verdade que outros antepassados nossos, que não eram europeus, mas africanos, tinham, ainda no século XIV; tentado chegar, de onde hoje é o Senegal, a Gâmbia e as Guinés, até a outra margem do que tinham por um grande rio.
Aqui, e em todo o livro, os fatos se vestem de poesia, têm ritmo, música, embora destinados a informar e argumentar; sugerem, insinuam, abrem janelas para a imaginação. Claro, sem pesquisa não há História, mas sem imaginação não há livro de História, como anota, aliás, Alberto da Costa e Silva no ensaio "Sobre Tomás Antônio Gonzaga", dedicado a um livro de Adelton Gonçalves. Um dos seus méritos seria nos meter nos olhos do poeta em Moçambique a olhar das janelas do prédio do governo, as ruas poeirentas do exílio.
A certa altura de Das mãos do oleiro, lê-se que o Atlântico é um "labirinto invisível". Sínteses poéticas como essa, de que há muitas no livro, é que o autor é poeta de oficio, dirão. Penso que indicam também uma concepção da História como gênero literário - o que a salva de infausta pretensão "científica. Se o objeto da História é o tempo humano, entre o tempo cósmico, muito além do nosso sentimento, e o tempo cotidiano, muito aquém da nossa aspiração, os escritores serão criaturas trágicas tentando conjugar os dois por meio de narrativas - quaisquer narrativas. Nesse caso, a função e o valor da História são os mesmos da Literatura, podendo ser escritas com minúsculas, história, literatura. Alguém já o disse de outra maneira: a alma da História são as histórias. Alberto da Costa e Silva também o diz no ensaio que dedica a um livro de Paulo Roberto de Almeida, Formafão da diplomacia econômica no Brasil: que ele ama a história como prosa. A prosa torna a História livro de história.
Alberto é, pois, da família de historiadores-escritores, a do Gibbon de A história do declínio e queda do império romano, a do Oliveira Viana de O ocaso do Império, a do Nabuco, de Um estadista do império, a do Rubens de Barcellos, de Estudos rio-grandenses, a do Eugene T arlé de Napolion ... Ou mesmo a do Raul Pompéia de Uma noite histórica, em que se vê a quanto pode ir o efeito da diversão nos historiadores-escritores.
Mas para quem Alberto tem sido um mestre?
Em primeiro lugar para o que chamamos movimentos negros. Ele desmanchou muitas das fórmulas prontas, idealizadas, com que esses movimentos pensavam incorporar a Mama África. Exibiu, por contraste com o que revelou em livros, artigos e palestras, a ignorância brasileira sobre o continente de onde viemos. Demonstrou, pelo rigor da pesquisa e a sutileza da observação, na linha de Gilberto Freyre, Nina Rodrigues, Manuel Querino e Arthur Ramos, que a África está em nossa maneira essencial ou ocasional de comer, de brincar, de ser bom e de ser cruel. Somos mais africanos do que pensamos. Nossos professores - obrigados, desde 2003, a ministrar história e cultura afro-brasileiras - já não precisam de clichês, bem ou mal-intencionados. Nos livros de Alberto da Costa e Silva - e façamos justiça, também nos de jovens historiadores acadêmicos atuais, a quem influenciou - os lugares de onde viemos ganham sua narrativa, entre o tempo cósmico e o vulgar. Lugares, atenção, não locais, objeto da antiga "geografia física", fixados no mapa por pontos geodésicos; lugares como redes existenciais que e estendem sobre a paisagem. Hoje, quando se diz África, por exemplo, já não nos vem à cabeça o Tarzan e os rios entupidos de jacarés, mas sociedades em variados processos civilizatórios. A própria imagem do africano escravizado, homem-coisa, foi corrigida - e vamos aprendendo a amar o negro escravo comum, desprezado por quem desejaria só descender de quilombolas. Foi a atenção a esse escravo inglório que nos permitiu descobrir o que certas partes da África têm de brasileiro.
O título que Alberto da Costa Silva deu a este livro é ambíguo: oleiro é tanto o operário de olaria quanto o ceramista de arte. Modéstia. Em qualquer dos casos se trata de um mestre-oleiro.
Joel Rufino dos Santos