Artigo

As banhas do ouvidor

Publicação original: 2007por Joel Rufino dos Santos

Cheguei em São Paulo em 1967, vindo de "outro sonho feliz da cidade". Sofrendo com o vento encanado do Anhangabaú, não acreditava tivesse vivido ali, só de tanga, uma tribo de índios. Contava Anchieta que naquele tempo a melhor brincadeira era escorregar para o vale do Tamanduateí em folha de bananeira. 

Em 1640, Portugal se separou da Espanha. Dom João IV, o Restaurador, exigiu que o Brasil inteiro lhe jurasse fidelidade. Na cidadezinha de São Paulo de Piratininga (já tinha mil habitantes), um punhado de moradores quis um rei daqui mesmo. Era um comerciante chamado Amador Bueno da Ribeira. Aclamado, Amador declinou da gentileza. Jurado de morte, escondeu-se no mosteiro de São Bento. Só veio à janela quando os ânimos esfriaram. São Paulo era região desligada de Lisboa - a grande lavoura não prosperara ali. Sua gente, muito cedo, deixou de se considerar lusitana.

Em 1620, numa fria tarde de agosto, chegou um ouvidor. Visita de rotina, dava medo em safados e honestos. Ouvidores aplicavam, na Colônia, as temíveis Ordenações. Onde hospedar o homem? Só podia ser na Câmara. O problema era que lá não havia camas. Na vila existiam algumas (a maioria do povo dormia no chão ou em redes). A primeira idéia foi requisitar uma, "em nome do Povo", para servir ao funcionário real. Outro problema: feitas na terra, eram bregas, estavam mais para catres. O que fazer? O tão ilustre ouvidor repousaria suas preciosas banhas numa "cama de negros"? Eis que alguém de repente se lembrou:

- A cama de Gonçalo Pires! 

Três veradores se dirigiram à casa do homem.

- Vossas Mercês estão malucos. A cama é minha, comprei em Portugal. Não empresto a ninguém.

- Então alugue, pelo amor de Deus.

Gonçalo saltou nos tamancos:

- Não empresto, não alugo, não dou, não vendo. Lá sou bugre ou negro pra dormir no chão? O senhor ouvidor pode dormir onde quiser. Na minha cama, não.

Os vereadores saem dali para o juiz.

- Se o tal de Gonçalo se recusa a servir Sua Majestade, vou declará-lo rebelde. Os senhores podem, nesse caso, confiscar a cama, usando a força. Se reagir, podem metê-lo no xadrez. Podem até enforcar, esquartejar. Está na lei.

Os vereadores retornaram com seis índios e homens armados. Invadem a casa. Ainda tentam um acordo:

- Não é ameaça, mas o senhor sabe o que é degredo para a África? Já deu uma volta pela Tabatinguera?

Em Tabatinguera - hoje Baixada do Glicério - ficava a forca.

Um dos oficiais pretendia a mão da filha de Gonçalo. Botou a mão no seu ombro:

- Seu Gonçalo, nessas circunstâncias, não acha melhor emprstar ou alugar a cama? Francamente...

Gonçalo mostrou a saída:

- A porta da rua é serventia da casa.

Os índios desarmaram a cama. No dia seguinte, as banhas do ouvidor Amâncio repousaram até tarde. Pela grade da cadeia, Gonçalo fitava um menino índio surfar em direção ao rio numa folha de bananeira da terra.

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