Data original: 2010por Joel Rufino dos Santos
Fui convidado a um programa de rádio sobre o médium Chico Xavier. Cheguei a ir à emissora. No último instante, tive o juízo de desistir. Provavelmente com meu ceticismo sobre a realidade dos espíritos, vida após a morte etc., acabaria ferindo a susceptibilidade de algum ouvinte crente.
Não é que devamos declinar do debate com crentes. Por filosofia, nada do que é humano nos deve ser estranho. A própria filosofia nasceu e se desenvolveu pela suspeita da crença. Desse amor humano ao saber (filo-sofia) vieram as ciências. Elas emergiram com dificuldade da nebulosa mítica inicial. Mas, num programa de rádio, na televisão, em sala de aula, mais vale a prudência: deixar os crentes com sua crença.
Anos atrás, numa aula de literatura, eu falava dos critérios de verdade: “Se, por exemplo, um cachorro entra por aquela porta e nos dá bom-dia, não acreditaremos. Vemos e ouvimos o cachorro, mas não acreditamos: cachorros não falam”. Quis reforçar a idéia e pedi que olhassem a baía de Guanabara pela janela, azul e cálida: “Se alguém viesse andando sobre o mar, neste momento..."". Um aluno levantou o braço imediatamente: “Andar sobre as águas, nem por hipótese. Só Nosso Senhor Jesus Cristo!”. Pedi desculpa, arranjei outro exemplo.
Hoje se tornou comum alunos evangélicos e espíritas confrontarem professores. Com a velhíssima arma da razão, podemos compreendê-los; eles não nos podem compreender, já que se baseiam numa crença. Crença, por definição, é indemonstrável. Foi impossivel (pelo menos até hoje) demonstrar, pela lógica, assim como provar, pela experiência, que mortos se comunicam com vivos. Um dos lemas da Igreja Positivista era “Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos”. O Barão de Itararé gozou: “Os vivos são sempre e cada vez mais govenados pelos .. mais vivos”. Esta é a linha divisória: nós, os céticos rationalistas, nos movemos no mundo dos vivos e mais vivos; eles, os crentes irracionalistas, no mundo dos mortos e deuses. Cada macaco no seu galho.
No mundo dos vivos há muito que explicar. Por exemplo: por que a idade da ciência e da técnica é também a da crença, do misticismo, da astrologia, da cientologia, dos gnomos, dos Chico Xavier? Bom, primeiro porque é um grande negócio. Aliás, a terceira neta de Einstein, Evelyn, formada em antropologia e literatura tem, na Califórnia, a rendosa profissão de “desprogramadora de seguidores de culto”. Uma ironia atroz.
Mas não é tudo. A ciência, com sua empáfia, e a técnica, com sua subserviência ao capital, favorecem o irracionalismo místico. Muitos cientistas afirmam que, mais cedo ou mais tarde, explicarão tudo. Muitos tecnólogos prometem que inventarão todas as máquinas para conforto do homem.
O senso comum de nossa época é ambivalente com relação à ciência e à técnica. Ao mesmo tempo que acredita em suas promessas, desconfia que haverá um outro saber, mais anterior e profundo, que as cauciona e lhes estabelece limites. O homem, enquanto homem, não precisa da ciência e da técnica para existir. A existência precede as duas.
Não entrei no programa sobre Chico Xavier. Chamo Bertrand Russell em meu socorro: “O que é necessário não é a vontade de acreditar, mas o desejo de descobrir, que é justamente o oposto”".