Publicação original: 2014por Joel Rufino dos Santos
Com vocês a Amazônia
Há locais no mundo que falam imediatamente à nossa imaginação - o Saara, a Groelândia, o Sertão, o Tibete, a Tartária, a Terra do Fogo, a Selva Africana, o Pantanal, a Amazônia... Quando garoto, eu mesmo tive um local mítico, a Gíria. A Gíria certamente existia, pois os mais velhos costumavam dizer, "Como se diz na gíria ... " O curioso é que rememoramos esses locais como vazios de gente. São efetivamente locais, pontos geodésicos fáceis de localizar em qualquer mapa - menos a Gíria, é claro. O primeiro desses lugares fantásticos sempre foi a Amazônia. Era ali o paraíso assombroso inicial, intocado, de onde o homem fora expulso por descobrir o sexo e o saber.
O punhado de aventureiros que se abateu sobre a América, da estirpe de Alvar Nuñes Cabeça de Vaca (1490-1560, estavam aterrorizados diante da Selva e do Rio. Sem os indígenas não teriam dado um passo no planeta das Águas. No seu recôndito, quem ousasse, seria premiado com o Eldorado; e voltaria, talvez, à condição inicial da idade do ouro: puro e ignorante.
Ocorre que nenhum desses locais é vazio de gente. A nossa espécie, há mais de cem mil anos, ocupou todos os continentes e regiões - todos os locais, dos mais amistosos aos mais inóspitos, uma das razões, aliás, nos ensinam os especialistas, da nossa "vitória" sobre as outras espécies.
Quando os pioneiros europeus entraram na Amazônia, a partir do fim do século xv, viessem de onde viessem, acharam populações. A Amazônia não era um local, mas um lugar. A distinção é sutil, mas decisiva. Local é um ponto no mapa, lugar é uma maneira de viver - morar, matar e morrer, produzir, comerciar, fazer filhos, reverencial e enterrar os mortos, se relacionar com a natureza e com as divindades. O local só muda a longuíssimo prazo, por mudanças abruptas ou lentas no meio e pela sistemática do homem; o lugar muda, a médio e curto prazo, ação das trocas comerciais e culturais.
A Amazônia mudou relativamente pouco desde a sua "descoberta" pelos europeus, no século xv. O desmatamento acelerado dos últimos cinquenta anos (quase nada na contagem do tem terrestre) é que dá a impressão de que ela esta mudando rapidamente. Hoje, praticamente, todos os povos da floresta – índios, seringueiros, garimpeiros, castanheiros, carvoeiros, pescadores pequenos sitiantes, ribeirinhos - interagem com os de fora, mas essas interações são do mesmo tipo das dos primeiros séculos: índios (povos da floresta) por baixo, estrangeiros (empresário, ongs, governos) por cima.
Uma palavra sobre Berta Ribeiro. Até a sua morte foi quem mais no ensinou sobre a Amazônia. Outros estudiosos acumularam, relativamente, mais informações sobre a selva e o rio imensos e sua gente ciclópica. Berta mergulhou nesses autores, mas não nos ensinou nada de segunda mão. Afastou as idealizações, descobriu os véus e nos entregou esse Amazonas Urgente que, já no título convida à luta contra às forças destrutivas do Mercado e, ainda que com pesos distintos, do Estado. Coerentemente, sua última personagem é Chico Mendes.
Berta nos entregou, em síntese, uma Amazônia como lugar, uma rede intrincada e dinâmica de vida. Por outras palavras, se vê no seu livro - inicialmente uma exposição - o que é ser gente na Amazônia. É sofrer num paraíso. Não o paraíso edênico, vazio de seres humanos, como no imaginário dos viajantes europeus, mas um local fantástico em que a vida repete, sem cessar, o seu milagre que se chama vida.
Ademais, o livro de Berta sugere uma metodologia para ensinar: transformarem livro o que foi exposição, em texto o que seduziu antes o estudante pelo olhar.
Novembro de 2013.
JOEL RUFINO DOS SANTOS É HISTORIADOR E DOUTOR EM
COMUNICAÇÃO E CULTURA PELA UFRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL
DO RIO DE JANEIRO.