Artigo

Do lixo se fez luxo

Publicação original: 2002por Joel Rufino dos Santos

Em São Pedro da Aldeia, Estado do Rio de Janeiro, um pobre negro levou quarenta anos para construir uma pequena casa. Ele a chamou de Casa da Flor, pois flor é o seu motivo único. Flores de cimento, de cacos de louça, de plástico, de pedra, montadas com faróis de carro, com pedaços de tijolos, com lâmpadas queimadas... Gabriel Joaquim dos Santos, o construtor, foi tudo de si mesmo: engenheiro, arquiteto, mestre de obra, pedreiro, marceneiro, decorador.

Nunca foi à escola e se alfabetizou adulto, com a ajuda de um menino. Na casa "estranha" fez um "altar de livros", pequena estante para abrigar seus livros evangélicos.

Gabriel só teve lixo à sua disposição. Quando, excepcionalmente, os vizinhos lhe ofereciam um bibelô inteiro, um prato não-quebrado, ele aceitava mas não via utilidade. Gostava de lixo, que saía recolhendo das casas ricas do município, embora fosse asseadíssimo. De noite, cansado do trabalho duro na salina, acendia a lamparina e se sentava para admirar a própria obra: "Eu mesmo faço, eu mesmo me admiro", dizia. Os cacos, o lixo, cintilava mentão no escuro da pequena casa, tão pequena que mal cabia um homem de pé. A Casa da Flor, agora que Seu Gabriel está morto, foi tomabada pelo Patrimônio Histórico do estado e pode ser visitada (bairro do VInhateiro, São Pedro da Aldeia).

Uma das primeiras idéias que ocorrem ao visitante da Casa da Flor é: ele transformou sua casa numa obra de arte, do detrito fez beleza. Do lixo fez luxo. Como conseguiu?

A resposta é complexa. Num primeiro nível, a Casa da Flor é resultado de uma obsessão: dezenas de anos Gabriel não "pensou" em outra coisa que não fosse a construção da sua casa "feita de flor". É verdade que mantinha um diário de coisas miúdas e coisas políticas gerais (a morte de Getúlio, o golpe de 64 etc.), mas a sua "obra" foi aquela casa. O que tinha de dizer no mundo, disse por aquela forma. Da salina para casa, da casa para a salina. Quando se converteu, caminhava aos domingos até à igreja batista.

Num segundo nível, Gabriel era uma personalidade artística modelo: tinha absoluta necessidade de expressar para os outros, por algum meio, e de alguma forma clara e bela, o caos do seu espírito. Nietzsche, em Assim falou Zarastustra: "Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante".

Essa é a parte universal da resposta que procuramos. Todo criador (ou quase todo) é um obsessivo que tem a compulsão de criar "uma obra" para os outros. Usa para isso uma competência técnica aprendida previamente (os artistas formados em alguma arte) ou aprendida no decurso da expressão - é o caso dos artistas "ingênuos" ou incultos, como Gabriel Joaqum dos Santos. Precisamos completar (ou antes, particularizar) a resposta, descendo a um terceiro nível: Gabriel foi um típico bricoleur - aquele que  trabalha com materiais fragmentários já  construídos, remendando coisas ou fazendo objetos de pedaços de outros objetos, ao contrário do engenheiro que necessita de matérias-primas. Lévi-Strauss estudou vários casos de bricolagem, não são raros.

A chave para compreensão da arte de Gabriel tem de ser buscada num nível mais profundo, histórico. A escravidão, que durou 80% do tempo que tem o Brasil de existência, se caracterizou, essencialmente, pela "coisificação" do trabalhador negro. Um aspecto dessa "coisificação" - nunca c onseguida, aliás, integralmente - era a imposição ao escravo de uma vida suja. Moradia suja, comida suja, roupa suja, relações humanas sujas (por que fundadas na tortura sistemática e na hipocrisia). O slogan da escravidão podia ser: "Ao pededor o lixo". O exemplo da comida já foi estudado em várias ocasiões: a culinária popular brasileira se fez de restos, sobras de mesa. A vestiemnta, de retalhos. A fantasia de folguedo (Bumba-meu-boi, carnaval, congada, folia de reis) é o realce, o brilho, a plasticidade que se dá a materiais comuns que, fora daí, não são nada. A fantasia vem do lixo e volta pro lixo, para desespero dos museólogos que querem conservar, guardar, catalogar.

A "coisificação" completa do trabalhador escravo negro nunca foi completa. Ele tinha uma carta na manga, exatamente esta> do lixo fazer luxo. Recolher os restos, os cacos, as sobras, as pontas, os re talhos, o que ninguém mais quer e querer e usar para sobreviver e criar beleza. Reconstruir-se a si, construindo concomitantemente o mundo de beleza que nos cerca. A Casa da Flor, de Gabriel Joaquim dos Santos, é uma aleoria desta história. Um livro aberto para que se veja. Ele próprio definiu sua obra:

"A gente entra nas cidades grandes, aquilo lá está tudo moderno, tudo bem organizado, tudo custa muito dinheiro. As pessoas vêem a força da riqueza... Mas aqui elas gostam de ver porque é a força da pobreza".

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