Publicação original: 2011por Joel Rufino dos Santos
Épuras do social
Joel Rufino dos Santos*
18 de maio de 2005
Estou vendo daqui alguns amigos e conhecidos. O que interessa nesse encontro de hoje, da minha parte, é falar um pouco sobre o meu Épuras do social.1Para mim, que já publiquei tanto, é um livro especial talvez por tê-lo escrito, salvo melhor palavra, com angústia. É disso que vou procurar falar, organizadamente, em três partes. Primeiro, a motivação para escrever o livro. Depois, o que ele tem de substantivo, que não pode ser desprezado sob pena do livro deixar de existir. E, terceiro, a resposta que eu dei ao problema que levantei. O título do livro é: Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres. Sem a pretensão de resolver, penso que tenho a minha resposta para a questão. Será a última parte do que pretendo falar.
Começo pela motivação. Esse livro me foi imposto por um monstro. Esse monstro é o pobre, mais ou menos aquilo que os antigos chamavam de informa, em latim, monstro. O pobre para mim sempre foi um monstro, embora eu tenha sido pobre a maior parte do tempo da minha vida e, num certo sentido, ainda serei. Essemonstro me atormentou a vida inteira e, confesso, escrevi esse livro para encará-lo. Onde o pobre mais aparece como monstro é a literatura, na ficção. E talvez por isso a ficção seja a única faculdade do espírito do homem capaz de ir além da sociologia, da história, da antropologia ou da psicologia, de pôr na nossa frente essa criatura sem forma. Hoje, por exemplo, antes de vir para cá, tomando banho, me lembrei de um poema de Vinícius de Moraes que descreve uma de suas amadas e me veio essa ideia: uma pessoa com tais pés,com tal cabelo, com tal maneira de andar, com tais espáduas; não é uma criatura real, normal, é um monstro.
Reconto no livro a saga sulina, muito antiga, do negrinho do pastoreio. É história de um senhor que pune, castiga ferozmente um negrinho porque perdeu um rodeio. O castigo terrível, besunta o negrinho de mel, o põe no formigueiro para ser comido noite após noite. Quando o senhor vai, cada manhã, buscar o que restou dele, ele está vivo. Até que o senhor se convence que não vai conseguir acabar com ele e o liberta. E ele se transforma num encantado, num monstro que percorre os prados como um alucinado, amedrontando todo mundo, com uma peculiaridade interessante - quando se perde algum objeto e esse negrinho monstruoso não encontra, pode desistir, ninguém vai encontrar. Nessa saga sulina o negrinho do pastoreio é o pobre e o monstro. Tem essa tentativa, muito nossa, de afastar o monstro, de tirá-loda nossa vista, de excluí-lo. Mas é inútil, ele inevitavelmente volta. Assim como volta o negrinho do pastoreio, volta o pobre que nos assalta no sinal. É o pobre sob a forma de monstro, o pobre sem forma, tal e qual a musa de Vinicius de Moraes, tal e qual o negrinho do pastoreio. Mas não encontrei pobres monstruosos só na literatura. Como fui preso político, eu o vi no cárcere, encontrei o pobre castigado duramente pela lei e, lá, ele me atormentou também. Eu pertencia a um coletivo de presos políticos em São Paulo, cerca de setenta pessoas, que convivia com um coletivo de presos comuns de aproximadamente duas mil pessoas. Conto no livro alguns episódios da minha relação com esses monstros do Presídio do Hipódromo. Escrevi esse livro para conjurar esses monstros que me perseguem. Obviamente, eu também convivi com eles na minha família, na minha vizinhança, entre meus amigos.
Uma das formas monstruosas de aparição do pobre é o lobisomem, o pobre monstruoso da roça. O lobisomem é uma figura mítica, um fantasma que assusta o sertão brasileiro desde tempos imemoriais, talvez desde o século XVII, já que é filho do lobisomem eslavo, germânico. Tento no livro demonstrar que ele não passa de uma figuração, uma apresentação, uma dramatização, uma narrativa, se vocês quiserem, do pobre do campo que atormenta o proprietário. Por isso se estabelece com ele uma relação muito peculiar, que atravessa os séculos e, num certo sentido, ainda sobrevive na política brasileira.
Por isso eu escrevi esse livro. Diria, também, para completar essa primeira parte da resposta, que o escrevi para enfrentar o neoliberalismo. O neoliberalismo tem se mostrado, ao longo da história brasileira, de diversas maneiras. A característica principal dele é a ideia de que os problemas humanos podem se resolver pela técnica, seja qual for, a técnica política, a econômica, a burocrática, a científica. Essa é a essência básica do neoliberalismo. É um monstro diferente daquele outro que é o pobre, de outro tipo, de outra natureza, nascido no universo da luta pelo poder, mas que, em todo caso, também é preciso conjurar. Está aí, em suma, a razão de eu ter escrito esse livro: conjurar monstros.
Um outro aspecto que também seria interessante definir logo, de cara esse título enigmático para quem não é iniciado em geometria ou em desenho, Épuras do social. Quero contar para vocês como me ocorreu esse subtítulo. O título - Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres - é claro: de um lado estão os intelectuais, que eu vou procurar dizer quem são, de outro estão os pobres, que eu vou tratar de dizer quem são e, depois, o que estes podem fazer por aqueles. Mas eu queria que o título desse conta, também, da nova situação em que nos achamos hoje, em 2005, diferente, historicamente, da situação que nos encontrávamos há trinta ou cinquenta anos atrás. A situação, do ponto de vista da civilização, é absolutamente inédita. E eu queria dar conta também desse fato no título, para que a minha pergunta - como podem os intelectuais trabalhar para os pobres - se reatualizasse, não desse ao leitor a impressão de que eu ia tratar desse tema como se nada tivesse acontecido nos últimos anos. Pois bem, eu procurava esse título e não conseguia encontrar até que, numa madrugada, sonhei com uma palavra, um termo, épura ... O que é épura? Já não me lembrava, ou já não sabia mais. Com muito esforço consegui me lembrar que tinha estudado isso no ginásio, em geometria. Me lembrei do professor, me lembrei do livro, me lembrei que tinha em algum momento sabido o que era. Fui atrás do conceito e vi que era exatamente o que procurava. É interessante como funciona, nesse caso, a mente, não é? Primeiro, dei com a palavra, depois fui dar com o conceito que procurava. Épura nada mais é do que um recurso da geometria descritiva para mostrar uma figura tridimensional em todos os seus aspectos e dimensões ao mesmo tempo, simultaneamente - através de um rebatimento de planos se consegue mostrar uma figura que antes só se via em dois planos, o horizontal e o vertical. Todos os aspectos que podem ser revelados pelas diferentes projeções nos planos vão aparecer, imediatamente, de uma forma total.
Era isso que eu estava querendo dizer: há no nosso tempo uma revolução que faz com que os fatos se apresentem com todas as suas facetas de uma só vez, em todos os seus múltiplos aspectos. Ou seja, não há na atualidade como separar, como se fazia antes, o econômico do político, do social, do simbólico, do cultural. Todos esses aspectos se apresentam de uma vez só. Não há ordem de predecessão entre os planos em que os fatos se apresentam. Essa ideia não é original minha, claro, alguns pensadores já vêm trabalhando essa epurização dos fatos sociais há algum tempo. Quando estava escrevendo o livro, acabei recuando a um pensador do meu tempo de estudante da faculdade que, em 1960, nós, de esquerda, desprezávamos solenemente por vir carimbado como pensador liberal. Mas agora, quando fui tratar de descrever essa revolução que faz o fato aparecer como fato social total, me pareceu ser ele um precursor dessa maneira de ver - é Ortega y Gasset. Por sinal, quem me advertiu que essa ideia do fato social total se apresentando integralmente à nossa vista estava em Ortega y Gasset, foi um pensador que, curiosamente, eu também critico no livro, o Hélio Jaguaribe. O Hélio ouviu a leitura de uma parte do original e disse: mas isso que você está dizendo aí já foi dito há tanto tempo por Ortega y Gasset. Ele tinha razão. Não é novidade, a rigor, essa ideia de que os fatos se apresentam hoje, graças mutação histórica que se pode datar dos últimos cinquenta anos, de uma vez, por completo, como fato social total. Outro que trata dessa \"epurização\" - como eu a chamo - do fato social, é Marcel Mauss.
Passo agora ao essencial do livro. Ele tem, aqui e ali, algumas sínteses ou sumários, especialmente na contracapa. Geralmente quem faz a quarta capa dos livros - uma espécie de janela - é o editor. Mas eu quis fazer e vou ler para vocês, são três parágrafos. Aqui está a essência do meu pensamento sobre como podem os intelectuais trabalhar para os pobres.
Por que intelectuais como eu querem trabalhar para os pobres? Há um lucro específico tanto em defender causas universais quanto em defender os pobres, uma espécie de mais-valia representacional recolhida pelas universidades, pelas ONGs, pelas editoras de ciências humanas, a Unesco, e assim por diante. A compra de trabalho com trabalho é uma forma pré-histórica de troca que sobrevive no interior do mercado capitalista, dando ao intelectual a impressão de que ele paga os serviços prestados pelos pobres com ideias e cultura. Para essa forma desaparecer (essa forma pré-histórica de troca de trabalho por trabalho) e com ela a boa consciência dos intelectuais, será preciso que o intelectual de classe (o intelectual crítico, ou compassivo, ou aliado do trabalho, ou aliado do não trabalho, ou aliado do capital, qualquer tipo de intelectual) se negue em face do intelectual dos pobres. Numa palavra, é preciso que ele se suicide enquanto tal, enquanto intelectual. Em que lugar fará isso? Em que lugar o intelectual cometerá esse suicídio? No Estado ampliado de hoje, espécie de publisfera criada pelo encontro da reprodução capitalista privada, que engendra valor, com a reprodução estatal, que engendra o que os economistas chamam de antivalor, O encontro do valor e do antivalor explode, numa explosão similar à explosão atômica, e se cria em volta essa publisfera que é o lugar onde o intelectual propriamente dito, que quer trabalhar para os pobres, se encontra com o intelectual dos pobres e se suicida em face dele, diante dele.2
Bom, a resposta que dou descarta logo de cara o trabalho assistencialista filantrópico-generoso, missionário. Na África pós-colonial, se usa para designar esse tipo de pessoa que larga tudo e vai ajudar os pobres sem ser religioso, sem ser missionário como cooperante; o missionário e o cooperante trabalham efetivamente para os pobres, mas não se trata disso. Trata-se de quê, então? Trata-se de um trabalho político, orgânico, digamos assim, um trabalho ideológico que visa a transformar a sociedade. Esse trabalho requer que o intelectual se transforme em trabalhador da cultura. Isso porque cultura já não é aquilo que era antes, uma superestrutura, um glacê do bolo constituído pela infraestrutura econômica, social, política etc. Como cultura já não é isso, mas uma feição essencial dos fatos, da maneira pela qual os fatos se nos apresentam hoje, é evidente que, ao dizer que os intelectuais devem se transformar em trabalhadores da cultura, estou querendo dizer muito mais do que se diria antes com a mesma expressão. O trabalho na cultura é uma práxis nova criada exatamente pela revolução havida no nosso tempo, que transformou um fato social num fato social total e deu à cultura uma central idade que não tinha antes. Tudo hoje, dito de outra maneira, é cultura, não há nada que não seja cultura, o que é bem diferente do entendimento que se tinha antes. Cultura antes era paideia, conjunto de belas ideias, belas intuições artísticas, belas expressões literárias, altíssimas especulações filosóficas. Quando se dizia antigamente que uma pessoa era culta, estava se querendo dizer que leu muitos livros, conheceu muitos quadros, muitos filósofos. Isso ficou para trás, já não é mais assim, essa ideia se desgastou.
Cultura é tudo, desde que visto na sua anterioridade, desde que visto nesse plano anterior aos outros planos em que a vida social transcorre. Por exemplo, o crime é cultura, a droga é cultura, a violência é cultura. Eu começo essa especulação sobre a nova acepção de cultura contando o que eu ouvi um cara dizer, num bar do Rio de Janeiro, no centro - o garçom estava demorando a trazer a cerveja e ele gritou: "Cerveja também é cultura!" Cerveja é cultura, nesse sentido de aventura existencial. Portanto, se cultura é isso, o trabalhador da cultura é aquele que vai realizar o trabalho político mais consequente em nosso tempo. Ele vai trabalhar onde, em que lugar? Aqui, o conceito de lugar é interessante, não diz respeito a um local geográfico. Ele vai trabalhar, realizar essa sua práxis na publisfera, a que me referi há pouco, nesse espaço criado pela ampliação do Estado.
Entro de novo em discussão com o neoliberalismo - sobre o que seria hoje o Estado, e o que ele deve ser. O Estado não é mais, há muito tempo, aquilo que foi no passado. Não é mais o conjunto de burocracia, governo e forças armadas. Ele é isso mais a esfera pública, mais as instituições que se movem em torno da esfera pública. É como se tivéssemos um cometa cujo núcleo duro, de ferro, continuasse a ser o governo, as forças armadas e a burocracia. Mas um cometa não é formado só do núcleo duro, é formado da cauda, de um sem número de partículas que o contornam e vão com ele para onde vá. Esse entorno, essa multidão de partículas que são também o cometa, por analogia, é o que hoje os cientistas políticos gostam de chamar de publisfera. O Estado também é formado por essa camada da publisfera, um monte de organizações não governamentais - o nome nasce exatamente para designar esse fato - que fazem aquilo que o Estado sozinho fazia antes e já não pode fazer. Em primeiro lugar, manter a ordem social: as ONGs visam manutenção da ordem social. Mesmo sendo portadoras de reivindicações econômicas, sociais, de gênero, de raça e assim por diante, mesmo sendo portadoras de reivindicações de todo o tipo, o que elas fazem é, em última instância, se responsabilizar pela manutenção da ordem social. Em segundo lugar, o que as ONGs fazem é transferir renda, assegurar que a renda gerada embaixo vá se acumular em cima. É exatamente como o Estado antigo fazia, com a peculiaridade de que o Estado antigo já não é mais capaz de fazer isso, por uma série de razões, inclusive por uma razão decorrente do próprio desenvolvimento do sistema capitalista.
O capitalismo já não é mais aquele, também, o Estado já não é mais aquele, os intelectuais e os pobres já não são mais o que foram. Há quem chame esse capitalismo agora modificado de tardio, uma expressão interessante. Mas há quem diga que se trata apenas do capitalismo na fase da sociedade do espetáculo, expressão também boa para dar ideia do que acontece hoje. Há quem o chame, também gosto, de videocapitalismo. De duas gerações pra cá, alguma coisa mudou essencialmente nas relações humanas, a acumulação de capital, a produção de valor, se dá basicamente fora da produção, se dá na criação da imagem do mundo, se dá no espetáculo da vida e não na própria vida.
Essa expressão, \"sociedade do espetáculo\", tem aproximadamente cinquenta anos e se deve a um pensador francês muito interessante, Guy Debord, que teorizou o nascimento dessa nova sociedade diferente de tudo que havia antes. Ele foi incômodo para pensadores conservadores, pensadores de direita, liberais, neoliberais, e incômodo para a esquerda, para pensadores críticos, marxistas, materialistas, materialistas dialéticos, existencialistas. Ele foi absolutamente incômodo apenas porque flagrou o nascimento dessa sociedade do espetáculo, desse capitalismo hipertardio, antes que ele se mostrasse com clareza para todos.
Então, o intelectual transformado em trabalhador da cultura e operando na publisfera, no espaço desse Estado ampliado deve, se quer trabalhar para os pobres, praticar o seu suicídio enquanto intelectual. Ou seja, deve trabalhar para o seu próprio desaparecimento e vai fazer isso em confronto com alguém; obviamente, em confronto com um outro tipo de intelectual que, até então, ele foi incapaz de reconhecer como tal, o intelectual dos pobres. Os pobres produzem seus próprios intelectuais o tempo todo, e eu examino, aqui, a título de exemplo, de protótipo, alguns casos muito conhecidos - como o do criador das escolas de samba do Rio de Janeiro, Paulo da Portela, o do compositor paulistano Adoniran Barbosa - e examino outros, menos conhecidos do público em geral. Eu examino o caso de Arthur Bispo do Rosário, o esquizofrênico que passou quarenta anos internado Juliano Moreira e falou muito, falou demais, se credenciando nesse meu conceito como intelectual legítimo dos pobres. Discuto de passagem se um esquizofrênico pode se tornar intérprete de algum grupo social... é uma discussão interessante, há quem ache que o fato de ele ter sido louco o incapacitava para representar seja que grupo fosse. Eu penso diferente. Apoiado em alguns estudiosos do caso Arthur Bispo do Rosário, concluo que ele foi um legítimo intelectual dos pobres, no sentido em que deu voz a uma comunidade determinada e pode servir como modelo de conduta para essa mesma comunidade, preenchendo, portanto, as exigências para ser considerado um intelectual orgânico, tal e qual um Mário de Andrade, um Afonso Arinos de Melo Franco, ou qualquer outro.
Então, o intelectual transformado em trabalhador da cultura encontra o intelectual dos pobres na publisfera e trabalha, primeiro, para o seu próprio desaparecimento e para a criação de um outro tipo de intelectual inexistente antes - que nem será tal como ele, nem será tal e qual o intelectual dos pobres. Há intelectuais que anunciam esse novo tipo, intelectuais híbridos, ao mesmo tempo intelectuais propriamente ditos, como nós, e intelectuais dos pobres, como são esses que eu examino a título de exemplo.
Assim, a resposta é: eu acho que os intelectuais que querem trabalhar para os pobres devem se suicidar enquanto intelectuais. Mas, claro, antes de chegar a esta resposta desconfortável, sugiro algumas ações menos desconfortáveis que podemos realizar a favor dos pobres - por exemplo, o trabalho de intérprete e destruidor de mitos. Essa sugestão também, obviamente, não foi feita agora por mim, como se tivesse descobrindo a pólvora. Muitos já fizeram antes... era, por exemplo, a especulação principal de Roland Barthes - o intelectual é um desfazedor de mitos, a única coisa que lhe dá realmente dignidade. Em comparação com outros profissionais, ele desfaz mitos e códigos. Ele está sempre alertando para o fato de que vivemos cercados de mitos, que toda a nossa relação se dá através de códigos, até quando não parece, quando aparenta não ser. E, obviamente, nesse momento - termino com isso- essa suposição de Barthes que eu incorporo, que faço minha, se casa com aquela minha primeira suposição de que os pobres são monstros que se apresentam diante de nós; ou nós os encaramos como monstros, ou só nos resta bater em retirada.
É isso. Agora, por favor, falem um pouco, digam alguma coisa.
- Será que este tipo de intelectual já não está morto?
J.R.S.: Eu concordo com essa sua especulação, talvez ele não precise se matar, já está morto. Senão, a hipótese é a de que o melhor que pode fazer é se suicidar, desaparecer enquanto tal. Foi preciso definir rigorosamente o que é "intelectual"; no primeiro capítulo do livro, tento fazer isso. Primeiro, constato que todo homem é intelectual, só um preconceito elementar separa os homens em intelectuais e não intelectuais. As tarefas mais rudimentares necessitam de alguma intelectualidade. Todo homem tem algo a ensinar a outro. Essa linguagem nossa, carioca, reconhece isso quando... agora já nem se usa mais, mas antigamente se chamava todo mundo de professor - professor!, se chamava o guardador de automóvel, o balconista do armazém, o guarda... todo mundo era professor. É o reconhecimento de que todo mundo tem alguma coisa a ensinar, trabalha com a cabeça. Então esse é o primeiro estágio. Num segundo estágio, o intelectual é o profissional liberal, é aquele que trabalha regularmente com livros, com ideias, com uma porção do conhecimento científico. O dentista, por exemplo, é um intelectual, um profissional liberal, que trabalha com aquilo que a odontologia põe à disposição dele em livros. O dentista é imediatamente reconhecível como um intelectual nesse segundo nível. Muito bem. Mas há um terceiro nível, uma terceira instância; dentre esses profissionais liberais, apenas alguns manipulam ideias universais, uma pequena corporação dentre os profissionais liberais, especializada em ideias universais. Nesse sentido essa corporação, esse intelectual é uma invenção francesa; não havia antes dos tempos modernos. Ela nasce depois da primeira guerra mundial, e não por acaso os grandes intelectuais mundialmente reconhecidos são franceses, mais do que norte-americanos, mais do que ingleses, do que alemães. O intelectual nesse sentido é tão francês quanto a champanhe, quanto a Haute couture - é uma invenção, é uma profissão especializadíssima, corporação dos que lidam com essas ideias universais.
Bom, esse advogado das ideias universais é cheio de ilusões, a começar pela ilusão de que há, de fato, ideias universais que constituiriam uma espécie de paraíso a ser alcançado por todos os homens que pensam. Ele tem essa ilusão. Segundo, a ilusão de que ele é absolutamente necessário ao funcionamento da sociedade e que, por isso, deve ser pago, de preferência em dólares, só viajar em primeira classe etc. Estou caricaturando um pouco, mas o que quero dizer é que há, de fato, um terceiro nível, mais sofisticado, de intelectual. Esse é o que tem mais ilusões e, efetivamente, precisa se suicidar primeiro. Por que? Por várias razões. As ideias universais são muito poucas, por exemplo, a teoria dos humanos é uma ideia universal, a democracia é uma ideia universal, a democracia é uma ideia universal. Não são muitas.
- Poderia falar mais, sobre esse novo tipo de intelectual?
J.R.S.: Eu indico alguns intelectuais da atualidade brasileira que antecipam esse intelectual a ser engendrado pela destruição dos dois, do propriamente dito e o dos pobres. O Ariano Suassuna tem alguns atributos do intelectual propriamente dito, advogado das ideias universais, e atributos do intelectual dos pobres.
Aqui no Rio de Janeiro, dou o exemplo de Nei Lopes. Ele é mais conhecido como compositor de samba, mas é também um historiador, um poeta culto - porque poeta pode não ser culto, nesse sentido que a gente dá ao termo. Ele também antecipa esse novo intelectual, tem virtudes de ambos os tipos anteriores. Por exemplo, uma virtude dos pobres que tanto o Suassuna quanto o Nei tem é a consciência pícara, gozosa, do mundo. Outra, uma consciência assistemática, um discurso não argumentativo. Não têm dúvida sistemática, praticam a ironia. São irônicos no sentido profundo, antigo do termo, não no sentido vulgar. Não acreditam nas próprias verdades que enunciam, ironia nesse sentido. Elesacham possívelchegar a formular o conhecimento, conhecer através da razão intuitiva, do sensualismo, do vitalismo, e não através da dúvida sistemática. Essa distinção é antiga, dúvida sistemática é a que funda a filosofiamoderna ocidental. A enunciação da verdade sem ironia é uma característica do intelectual propriamente dito. Claro está que os que citei, como exemplos, tem atributos comuns a estes - o conhecimento da história do pensamento, o sentimento de pertencerem a uma corporação que vem do passado, a uma espécie de família de letrados, enfim... É difícil indicar exemplos de pessoas vivas,que ainda estão em processo de construção de uma obra.
- Fiquei com a questão se seria trabalhar \"para o, pobres\" ou ‘com os pobres’: Esse \"para\" seria \"a favor\"? Mas tem também essa conotação de doação, de assistência. Então não seria melhor ‘trabalhar com’?
J.R.S., Sim, \"para\", quer dizer \"a favor\". Se \"com\" o traduz melhor... É possível, eu também já me fiz essa pergunta. Vou tentar falar dessa questão como um todo. Penso que do Renascimento pra cá, desde o século XVI pra cá, a sociedade está dividida entre os que dão o trabalho e os que dão o capital. Ou, mais simplesmente, a questão principal da nossa civilização moderna, ocidental, é a questão da contradição entre o capital e o trabalho. O capital cria o trabalho, na forma moderna e, obviamente, é o trabalho o principal criador do capital, também na forma moderna. Capital e trabalho são criações modernas, não existiam antes. Não quer dizer que não houvesse trabalho antes, e que não houvesse formas primitivas, brionárias, disso que a gente chama de capital. Mas capital e trabalho são fenômenos modernos. Muito bem, isso quer dizer que os intelectuais, que somosnós, em última instância estamos repartidos entre os que ficam do lado do trabalho e os que ficam do lado do capital. Isso não significa uma adesão necessária a concepções político-filosóficas, capitalistas ou trabalhistas, ou mesmo a visões de mundo idealistas ou materialistas. Significa apenas uma divisão concreta, objetiva, da produção intelectual: ou ela visa a fortalecer o capital, ou a fortalecer o trabalho. Por outras palavras: ou ela visa a submeter o espírito do homem à mercadoria - que é a essência do capital - ou a ajudar o homem a se tornar autônomo da mercadoria. Se pode dizer isso de outra maneira. Em linguagem didática, filosófica, se diria o seguinte: ou você, com seu trabalho intelectual, trabalha pela alienação do homem, ou você trabalha pela desalienação do homem.
Então, quando eu penso que o trabalho, em termos éticos, de valor, é superior ao capital, eu quero dizer que o dever ético dos intelectuais é se colocar ao lado do trabalho e contra o capital. Pode parecer uma concepção muito maniqueísta, mas talvez não seja, necessariamente, porque entre o capital e o trabalho há mil posições filosóficas, políticas, existenciais, morais, estéticas, que podem ser perfiladas por um defensor de qualquer um dos dois termos, dos dois polos. É possível, por exemplo, a quem se coloque essencialmente do lado do trabalho, defender posições filosóficas que nada tem a ver com o mundo do trabalho. E é impossível, também, você estabelecer de antemão, a partir desse critério essencial, onde está a verdade de qualquer posicionamento existencial ou filosófico. Até mesmo uma pessoa que tenha uma consciência esotérica, religiosa, pode fazer essa opção ética fundamental pelo trabalho e não pelo capital. Quando eu digo que se trata de uma questão ética, estou querendo dizer que tem pouco a ver com a divisão objetiva da sociedade entre capital e trabalho. É como se fosse possível abstrair dessa contradição e decidir - consultando unicamente a sua consciência, o seu imperativo categórico e em seguida, descer para a sociedade, para a contradição, e aí se posicionar.
- Isto é que define a posição do intelectual?
J.R.S.: Quando eu utilizo aqui as teses de Guy Debord, o inventor do conceito \"sociedade do espetáculo\", não é por acaso. Ele travou uma polêmica enorme nos anos sessenta, na França, sobre o seguinte: a nova etapa do capitalismo em que nos encontramos significa uma descolagem da sociedade capitalista, da reprodução capitalista, ou não? Débord foi um dos mentores intelectuais de maio de 1968, e tentou demonstrar que, apesar de todas as transformações que estavam ocorrendo na sociedade contemporânea, a maneira pela qual a sociedade se reproduzia continuava a ser através da mais-valia, através da mercantilização dos objetos, através da produção incessante do valor de troca. E dizia ele: o que acontece é que agora a produção do valor de troca, a produção do lucro já não se dá mais no nível da produção de objetos como antes, quando então se produzia nitidamente a mais-valia do capital. Agora a reprodução se dá no nível da aparência, se dá no nível do espetáculo e, portanto, já não há mais uma mais-valia industrial, e sim a que ele chamava de espetaculista, ou seja, agora a sociedade se reproduz pela imagem e não mais pela produção de objetos. Isso significa que as relações entre as pessoas, entre as classes e entre os grupos, se dão no instante em que os objetos se espetacularizam. No instante em que a vida aparece, em que a vida deixa de ser autêntica, ele usava muito essa expressão, \"quando a vida se torna inautêntica\", quando tudo se torna imagem. Só conta aquilo que aparece, que se vê, o que se espetaculariza. Porque é aí, nessa fase, é que se dá a reprodução do sistema fundado na mercadoria.
Então, isso significa que o trabalho deixou de ser aquele trabalho que era antes, assim como o capital, apesar de não perder a sua essência de capital, deixou de ser o capital industrial; a mais-valia deixou de ser a mais-valia industrial e passou a ser a mais-valia espetaculista. Também a vida deixava de ser uma coisa e passava a ser outra, o trabalho deixava de ser o que era antes e passava a ser outro. As relações entre as pessoas, entre os grupos, deixava de ser aquela e passava a ser outra. Enfim, era possível continuar, mesmo na sociedade do espetáculo, do lado do trabalho. A antiga opção, trabalho ou capital, continuava existente. Eu penso que é o ponto de vista melhor. Daí ser necessário buscar uma identidade para o intelectual na nova situação, mas levando em conta a antiga contradição entre capital e trabalho. Portanto, as tarefas de quem se coloca ao lado do trabalho continuam, no fundamental, as mesmas; elas mudaram, digamos, de tom, mudaram de lugar. Hoje o lugar é a produção da imagem, não mais a produção de objetos.
- Há uma visão espacial, há uma visão temporal, uma nova visão filosófica que o Habermas também coloca, da transição da utopia da sociedade de trabalho para a nova sociedade de comunicação. Já estamos aí?
J.R.S.: Eu acho que sim. Diversos autores colocam a questão assim, não apenas o Habermas. Eu acho que é uma tônica do pensamento sociológico e crítico, desde 1960 aproximadamente, essa colocação. Alguma coisa aconteceu que mudou efetivamente a vida. A vida já não é mais aquilo que era antes, talvez nem nome de vida mereça ter. A impressão, nessa linha do Habermas e da escola de Frankfurt, é a de que tudo que a gente dizia ser o mundo perdeu o significado. Música, educação, arte. Bom, no caso da arte é que se vê mais claramente isso, não é? A arte contemporânea só pode ser chamada de arte com muito boa vontade, porque já não tem qualquer descolamento com relação ao real, colou no real completamente. Nesse sentido não é mais arte. Claro que se pode chamar de arte isso que se vê nos museus, nas galerias, nas performances, mas nada tem a ver mais com a arte.
A própria violência existia no mundo real, obviamente, era um fato do mundo real e o cinema, a literatura etc., refletiam essa violência - elas estetizavam essa violência. Hoje, o que o cinema faz é pôr na tela aquilo que absolutamente há no real, já não há mais descolamento, não há reflexo, não há mais espelho. A violência da tela é absolutamente a mesma violência da vida. É nesse sentido a especulação do pessoal de Frankfurt, do Habermas especialmente. Eu gosto muito dessa imagem: antes você tinha um bolo de chocolate, e a cobertura podia ser de baunilha, morango, chocolate, podia ser de várias coisas; mas era uma cobertura. Hoje você só tem a cobertura de chocolate para o bolo de chocolate. Quando você só tem uma cobertura da mesma natureza do que está cobrindo, a arte não faz mais sentido. E, talvez por isso, os jovens não sintam absolutamente nada diante da arte. Eu acho que é assim. E vocês?
- A arte parece não representar mais, mas tenho dúvidas se ela não é mais significativa. Queria colocar a questão da épura; você parece pensar um plano determinado por um só corte. É a linguagem topológica que a gente usa em psicanálise. Um só corte, determinando, em sua anterioridade, todas essas figuras que pertencem a esse campo amplo da cultura. Eu te perguntaria se isso não teria a ver com Freud, com a relevância que a questão da linguagem adquiriu depois de Freud. É a linguagem que faz o fio desse corte que permite você falar de um só rebatimento de todos os planos? Também me ocorreu que a posição do psicanalista de certa maneira tem muito a ver com o desaparecer, pois frente ao trabalho do inconsciente, ele tem que desaparecer para que o trabalho do inconsciente possa aparecer com todo o seu valor. De alguma forma nós somos o preço, aquilo que o sujeito paga por uma certa parte fadada a desaparecer. Agora, nesse confronto - porque a ideia que você traz é de um confronto - cujo resultado é uma coisa híbrida, seria a ideia hegeliana? Um e outro se confrontam e se faz uma intercessão entre os atributos de um e os atributos do outro. Parece que nada foi perdido exatamente, eles se somaram, mas alguma coisa desapareceu nesse confronto.
J.R.S.: Estas duas questões são interessantíssimas pra mim. Primeiro, isso de que a linguagem seria essa anterioridade da existência social. Há uma existência social e há uma anterioridade dela, onde ela se mostra antes de se mostrar nos outros planos, e é na linguagem. Essa é uma hipótese bem provável, uma maneira de ver convincente, é isso que quero dizer, e entra a psicanálise. Eu acho que o importante é reconhecer que há sempre uma anterioridade, qualquer que seja o nome que se dê, qualquer que seja a descrição que se faça, há sempre uma anterioridade. Essa é uma observação sobre a primeira questão. A outra questão é sobre a necessidade de haver uma perda sempre que há um confronto destruidor, autodestruidor, não é? Bom, essa tese do suicídio do intelectual que quer trabalhar para os pobres é, digamos assim, uma tese hegeliana. A ideia de que você tem uma tese e uma antítese, que vão formar uma síntese pela negação uma da outra, gerando uma terceira coisa que, por sua vez, se subdividirá outra vez em tese e antítese, fazendo desse jeito avançar a consciência universal, a consciência do mundo, a ideia. Bom, é uma tese hegeliana, aí você coloca essa dúvida, essa brecha. É uma brecha. Sempre que a tese e a antítese se anulam, o que é que desaparece? Alguma coisa vai desaparecer aí, eu não tinha pensado assim, mas é possível pensar porque isso que se perde é porta aberta para alguma coisa, como se fosse um buraco negro. O buraco negro, na analogia que me ocorreu, é também um choque absurdo entre duas forças ou muitas forças, e há uma anulação de tudo. Mas ele não é zero, alguma coisa se perde e alguma coisa se ganha. Há uma perda, mas há um ganho, alguma coisa surge de novo, que também não existia antes, mas diferente essencialmente daquilo que havia em natureza. A própria noção de tempo é substituída por outra. As próprias dimensões existentes antes são substituídas por outras dimensões. Você tem a perda e o ganho. Eu não tinha pensado, acho que é uma boa sugestão para pensar. Nesses dois intelectuais que se anulam, o que se ganha e o que se perde?
- E a história vista pelo pobre?
J.R.S.: É uma questão também essencial do livro. Uma das ideias universais que o intelectual propriamente dito manipula com grande habilidade é a ideia de história, seja mundial, seja nacional, a história como tal, uma determinada organização argumentativa do passado. Isso não serve para nada; do ponto de vista dos pobres, a história não serve para nada. Para quem passou a maior parte do tempo como historiador, como foi o meu caso - não foi sem um certo desconforto que eu concluí isso - é evidente que aquilo que se chama história do Brasil só serve para atormentar criança na escola. A história não trabalha o esquecimento, ela apaga o esquecimento: e o esquecimento faz parte do patrimônio cultural dos pobres, a vontade, o desejo, a necessidade de esquecer. Há outros exemplos, mas esse me parece bem evidente: a história é uma criação culta, universal, uma ideia manipulada como instrumento de dominação. Os pobres não precisam da história. Alguns historiadores já há algum tempo desconfiam disso. Hoje de manhã, por acaso, estive lendo um medievalista francês, Marc Bloch, que foi morto pela Gestapo. Já sabendo que ia morrer - ele era maqui, tinha sido capturado quando da queda de Lyon e teve um ou dois meses antes de ser fuzilado. No intervalo das torturas, escreveu muita coisa que foi publicada depois. Ele enfrenta essa questão corajosamente, e se pergunta: para que serve a história, se a barbárie está sempre triunfando? Ele está pondo em dúvida um dos pilares do intelectualismo culto, que é a história, o relato, a análise, a ciência. A conclusão dele sabe qual vai ser? A história merece ser estudada porque diverte, distrai, mas não porque ensine qualquer coisa ou evite o reaparecimento da barbárie. Bom, se ele estivesse vivo hoje... a barbárie triunfa sempre, então para que estudar história? A revolução cubana não vai se repetir, aconteceu uma vez. Dezenas, centenas, talvez milhares de jovens morreram para aplicar a lição da revolução cubana mas ela não vai se repetir nunca, nenhum fato se repete nunca. Eu acho que é isso, na questão da memória e do esquecimento, faz diferença o intelectual do pobre e o intelectual propriamente dito.
Bom, eu quero agradecer a vocês a paciência de terem me ouvido e terem colocado questões. Quando lancei esse livro, ao invés de livraria com autógrafo preferi lançá-lo, através de debates assim. Acho que acertei na mosca. Primeiro, por não obrigar pessoas que gostam de você a comprarem o livro, parentes etc. Segundo, porque o livro preenche seu objetivo, que é provocar discussão. Então, muito obrigado.
*Doutor em Comunicação e Cultura, escritor e historiador.
Notas e Referências Bibliográficas
1 SANTOS, J. R. dos. Épuras do social: Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres, São Paulo, Global Editora, 2004.
2 Idem.