Artigo

Joćo Ubaldo

Publicação original: 2014por Joel Rufino dos Santos

Quando era menino, o pai de João lhe deu para ler, em inglês, as principais tragédias de Shakespeare – Romeu e Julieta, Hamlet, Otelo, Rei Lear, Mcbeth. Perguntou depois o que achara. “Gostei, pai, mas morre muita gente...” O pai lhe deu um cascudo, “São tragédias, sua besta, o que você queria?”

Penso que esse menino foi o melhor escritor de nossa geração. Ele pensou o nosso destino comum em romances sedutores (no sentido profundo que Muniz Sodré deu a este termo) e numa língua que sendo clássica é a que falamos – Sargento Getúlio, O segredo do lagarto, Vencecavalo e o outro povo e, primeiro de todos, Viva o povo brasileiro.

Tudo começa com o caboclo Capiroba, durante a ocupação holandesa da Bahia (1630-34). Capiroba se habituara a comer portugueses capturados em combate, até que, inadvertidamente, comeu um holandês, gostou tanto que montou um m criatório deles, sua filha fez vuque,vuque com um novo animal e deu início a uma das linhagens brasileiras. Houve a linhagem portuguesa, a dos homens formidáveis e cínicos, e a dos negros, profundos e sedutores. São as célebres matrizes do povo brasileiro pensadas por um romance – e que são, hoje, os romances senão uma forma superior de conhecimento? Eis em Viva o povo brasileiro – que um amigo nunca leu por não captar a ambigüidade do título. Lá estão as nossas raízes e sua desmistificação, nossos heróis e nossos canalhas, a mentira deslavada da história que nos contam, desde Capiroba, ou desde a “façanha” do Alferes José Francisco Brandão, ou desde Nego Leléu, o pai dos pretinhos espertos da Bahia, a vida comum e a formidável, nossa  grandeza e nossa miséria, nossa majestade permanente e nossa humilhação diária.

Viva o povo brasileiro tem muitos começos, o leitor magnificado escolhe. Se é certo que somos uma cultura de sedução, o nosso livro é a obra-prima de João Ubaldo Ribeiro. Seduzir é mais do que tirar do caminho. Cultura de sedução é a de Viva o povo brasileiro: nela não há progresso ilimitado, a História não é superior ao mito, o moderno não é melhor que o antigo.

A escritura de João Ubaldo – como a de Faulkner a de Saramago, a de Jorge Amado – era encantatória, nos romances como na coluna dominical de O Globo, esgarçava o mundo aparente deixando ver o que está por baixo. Sua feição era a ironia como contra-ideologia. Foi um homem engraçado que precisava avisar “Estou falando sério”.

Final do grande livro. Três  ladrõezinhos, Batata, Nonô e Sororoca, roubam o baú de um general. Resolvem abri-lo. Vêem um monte de coisas. Ladrões aos montes, “de duque de diagonal, terno de gabardine, gravata de seda, alfinetes de brilhantes, botuaduras de péurulas, sapato de corcordilo, água de cheiro no subaco de vintes contos a gota! Isso quando é paisano”. “ – Tem  ladrão fardado?” “ – Niminfales! Jesus Cristo, oi cuma tem! Menino!”.

O fecho. No meio de tanta desamparo, “Ninguém olhou para cima e assim ninguém viu, no meio do temporal, o Espírito do Homem, erradio, mas cheio de esperança, vagando sobre as águas vazias da grande baía”.

São tragédias, sua besta, o que você queria?

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