Artigo

O dia em que a História desabou sobre um cofer de praça chamado Raimundo

Publicação original: 2005por Joel Rufino dos Santos

Neste mês faz 51 anos que o presidente Getúlio Vargas se matou. A volta do parafuso, que culminou naquela manhã de 24 de agosto, começou, porém, no dia 5. Pouco depois da meia-noite. Dois tiras enviados para espionar o jornalista de oposição Carlos Lacerda o esperam na porta de casa, Rua Tonelero, Copacabana. O motorista, à moda de Chicago, estaciona numa rua transversal atrás do prédio. Os tiras vêem Lacerda desembarcar com o filho e um segurança. O garoto tem 15 anos e se lembrará daquela noite para sempre. O segurança é o major da Aeronáutica Rubens Vaz. 

O trio agora se despede. Um dos tiras atravessa a rua mal iluminada e vazia (somente um casal atracado embaixo de uma árvore). Abotoa o jaquetão, fumando à Glenn Ford. O segurança de Lacerda faz que retorna ao carro, contorna-o e surge a dois passos do sujeito:

- Ei, quem é você?! Onde pensa que vai?

Dá-lhe voz de prisão, lhe aplica uma chave de braço. Ouve-se o primeiro tiro. O segurança parece ferido nas costas. Alcino João (esse o nome do tira) passa o braço livre sobre o próprio ombro e, com dois tiros de 45, acaba de despachá-lo para o além.

O que acontece com o assassino, em seguida, é um thriller de cinema. Troca tiros com um vigilante, despenca no táxi que o trouxera à Rua Tonelero, se desfaz da arma na Praia do Flamengo, discute com o chofer, engole uma cerveja com gosto de sangue na Praça da Bandeira. Depois, a prisão, a tortura, 21 anos e oito meses de cana, pegajosos e mornos como as águas de uma cisterna sem fundo.

O Inquérito Policial Militar (IPM) instaurado pela Aeronáutica "provou" (desconfiemos dessa prova) que o mandante do "atentado" (entre aspas) ao jornalista, que resultou na morte do major Rubens Vaz, havia sido Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Getúlio. Gregório "confessou" que o mandante principal foi Benjamin, irmão do presidente. A nação, horrorizada, exige a renúncia. Getúlio, emparedado, se mata 19 dias depois.

Moreno de cabelo liso, em menino o chamavam Raimundo Bom Cabelo. Fazia ponto na porta do Catete com um Studebaker preto. Na noite de 5 de agosto, fez uma corrida para dois tiras até Copacabana. Pediram que esperasse. Dali a pouco um tiroteio. Um dos tiras, Alcino João, se joga no táxi, gritando.Desce na cidade. Voltando para casa, Raimundo ouve música no rádio. Interrompem urgente para anunciar o crime inonimável. Raimundo cai em si. Inspeciona o Studebaker: está crivado de balas. Apavorado, se apresenta ao distrito mais próximo, esquina de Catete com Bento Lisboa. Cochilando sobre um braço esticado na mesa, o investigador abre um olho:

- O que deseja, amigo?

- Tenho um táxi. Entrei de gaiato nesse atentado aí da Tonelero.

- Onde foi mesmo?

- Rua Tonelero, Copacabana.

- Pô! E tu vem perturbar o meu plantão. Aqui é Catete.

A História desabara sobre a cabeça de Raimundo Bom Cabelo. Do investigador que só queria dormir não ficou o nome.

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