Publicação original: 2001por Joel Rufino dos Santos
O Marginal Competente
De nada serve partir das coisas boas antigas.
É melhor partir das coisas novas e ruins.
Brecht
Este pequeno ensaio começou em 1992.
A Faculdade de Letras da Universidade Lumiêre, de Lyon, me convidara para ministrar um Curso de extensão com tema à minha escolha. Decidi mostrar a influência do pensamento francês - Montaigne, Rousseau, Reynal, Chateaubriand, Le Breton, Saint-John Perse... - sobre nossos escritores. Na primeira aula (eram estudantes de literatura, filosofia e história), perguntei que autores não-curriculares haviam lido ultimamente. A maioria respondeu Polô Coelhô. Mais tarde, na sala de professores, alémdo assédio de um latinista ameaçando tirar "Garota de Ipanema" ao violão, vários, com olho rútilo, quiseram saber se eu privava da amizade do autor de L\'Alchimiste. Passando em Bolonha, novo susto: as vitrines do principal editor de esquerda, Feltrinelli, exibiam, de cima a baixo, o Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei. Foi o que fiz, embora sem o rio.
Oito anos depois, com tranquilidade e método,tentarei responder a duas perguntas que então me atormentaram. Por que um autor tão medíocre fez tanto sucesso, dentro e fora do Brasil? E em seguida: por que nós, professores de literatura, o achamos tão medíocre1?
O MOUSE E O ANJO2
O primeiro grande editor de Paulo Coelho, Paulo Rocco, me garantiu que ele é um "gênio do marketing". Coelho sempre calibrou inteligentemente sua imagem pública: hippie, poeta, mago, alquimista, peregrino, bruxo, nigromante, louco, esotérico, conselheiro espiritual e, ultimamente, escritor; ele domina a técnica de vender a própria imagem - certa época garantia fazer chover e, nas fichas de hotel, informava: "profissão mago".3 Como se não bastasse, montou uma autobiografia4 em que se apresenta de forma pretensiosa como guerrilheiro contra a ditadura e, ainda hoje, tira partido de uma internação em casa de saúde psiquiátrica para se apresentar como "perseguido pela autoridade". No todo, um intelectual espetaculoísta, com raízes na tradição espiritualista do Ocidente.
A técnica de marketing não é novidade para a indústria editorial e, em nosso caso, pode ser datada da célebre circular de Monteiro Lobato aos vendeiros nos anos 30: "Vossa Senhoria tem o seu negócio montado e quanto mais coisas vender melhor será o lucro. Quer vender também uma coisa chamada \'livro\' ?"5
Ocorre que hoje já não se vende, a qualquer custo, o produto, mas a pessoa.6 A rigor nem essa, mas sua imagem. E, claro, houve aqui uma associação entre a empresa editora e o marqueteiro genial. Coelho veio de uma editora pequena (na verdade do setor comercial de gravadora) para uma grande, terminando noutra de ponta (Objetiva), o que já acontecera com José Mauro de Vasconcelos, nos anos 60. São trajetórias comerciais, sem correlação com o desenvolvimento intelectual e literário dos autores.
Uma questão que se repõe (já se pôs no passado) é por que e como um autor em língua não anglo-saxã conseguiu ingressar no top da publicação global. Houve uma pequena dose de acaso, mas Paulo Coelho apresenta alguns requisitos (talvez seja melhor dizer conveniências, aliás o nome das lojinhas hoje acopladas a postos de gasolina) indispensáveis ao sucesso literário global. Primeiro: não pertencer à tradição de pedantismo da literatura brasileira; sua prosa talvez possa ser vertida para qualquer língua escrita do mundo sem prejuízo - em francês, inglês e italiano até "melhora". Segundo: representante da literatura de massa, Coelho lhe acrescenta certo talento narrativo (em compensação, lhe faltam, desde logo, outros ingredientes favoráveis a autores do Terceiro Mundo, como o exotismo e a marca ideológica).
Qual o talento específico de Coelho? Contar bem, que é a habilidade de falar sem dizer: a prosa de Coelho é acaciana. Para desenvolvê-la, ele garimpa tradições esotéricas do mundo todo em busca de fábulas e anedotas que expressem um conteúdo - ele diz "mensagem" - também acacianas: o "conhece-te a ti mesmo", o primado do espírito sobre a matéria, a determinação do invisível sobre o visível, a realidade do anjo da guarda, o valor da intuição, a lenda pessoal etc. Para muitos críticos, essa massa de senso comum esotérico classificaria Paulo Coelho como um naif das letras. Eu o vejo de outra forma: não se trata de um ingênuo arcaico (de sucesso, portanto, artificial), mas de um representante da nossa modernidade tardia (de sucesso, portanto, natural).
O esoterismo contemporâneo (que convém distinguir do ocultismo) é uma produção ideológica da modernidade recente. Giddens e outros7 demonstraram que a modernidade ocidental é uma reprodução infindável de sistemas de confiança. Ninguém sabe (salvo os especialistas) como funcionam os aparelhos que usamos todos os dias - o rádio, o telefone, a televisão, o automóvel.... Confiamosem que eles funcionam, eis tudo. Se vamos nos operar, pedimos ao médico que nos explique a operação, mas esse conhecimento é apenas um milésimo do que vai se passar - sem confiança num saber específico, fora de nosso alcance, não nos operamos. No plano da economia e sociedade, igualmente. Ninguém precisa saber como funciona o mercado de capitais para comprar ações ou emitir um simples cheque - confia-se que, como quer que seja, seu investimento será remunerado ou sua assinatura honrada. O corpo da ciência e tecnologia atuais funciona como uma espécie de língua universal que dispensa cada falante de pensar, a cada vez, nos significantes - eles são arbitrários em sua origem, mas confiáveis em sua utilização. Pois bem: essa confiança estruturante da vida sob a modernidade é confiança em sistemas peritos (Giddens). Confio em que os médicos, eletricistas, agentes financeiros (os peritos) etc. sabem por mim. Eu não poderia viver se não confiasse neles. A política, por exemplo, é um sistema perito de governo: os políticos sabem como governar (os que escolhi, pelo voto, mais do que outros) e basta eu confiar neles. Os sistemas peritos, abstratos, são acessíveis por meio de técnicos com rostos confiáveis (Giddens). Ninguém confia num agente financeiro sem terno e gravata, num médico de roupa berrante, num político de rabo de cavalo, num craque de futebol de óculos etc. Pois bem, se pensarmos no mundo sobrenatural como uma abstração confiável (como a eletrônica, a medicina ou o mercado de capitais), Paulo Coelho será um perito de rosto confiável que nos garante o acesso a ele.
O esoterismo contemporâneo é mais uma confiança do que uma crença, sendo, portanto, perfeitamente moderno. Ocorre que a voga esotérica aumenta sem cessar em nossa civilização e devemos buscar uma segunda razão para explicá-la, além da generalização da confiança em sistemas peritos. Essa pode ser a cibernitização das comunicações, sob as formas mais comuns do computador e da Internet. O computador é, para começar, um sistema perito: embora nenhum de nós saiba explicar como funciona, confiamos, ao ligá-lo, que nos dará acesso à rede - confiamos, ademais, que essa rede é real. A um clique do mouse nos transportamos instantaneamente (à velocidade da luz) pelo ter (o ciberespaço) a qualquer ponto da rede. O ciberespaço, o que é? Um mundo de luz (mas também se pode usar a imagem, mais poética, de um vazio escuro em que os sinais vão retraçando rastros de luz, como uma cidade iluminada à noite). O computador é uma epifania: na tela do computador nada se representa; o texto, por exemplo, não tem história, como no manuscrito, ou na máquina de escrever - que guardam o texto emendado; no texto do computador, não há rascunho ou borrão, o que você escreveu se esvai: é deletado. Não é apagado, é deletado (de deletere, destruir, como se vê, por exemplo, em Delenda Cartago, ou em deletério, destrutivo). Assim, os programas de editoração eletrônica realizam o velho sonho do capitalismo: o fim da história, o presente perpétuo. Nada mais esotérico, portanto, que o ciberespaço. E nada mais parecido com um anjo do que o mouse - branco, onipresente, onisciente, consolador, instantâneo, deslocando-se em tempo real como os anjos.
Na aparência, a voga de esoterismo que varre o Ocidente (desde, digamos, a New Age, no começo dos 60) é um contra-senso na idade da ciência e da técnica. Na realidade, não há contra-senso algum: a revoada de anjos foi gerada pela mesma difusão da ciência e da técnica propiciada pela sociedade do espetáculo.8 É seu pendant. Nada mais moderno, nos dois sentidos (de hodiernus: que está acontecendo hoje; e de típico da idade moderna), do que mouses e anjos.
São essas coordenadas (confiança e caráter etéreo do ciberespaço) que situam Paulo Coelho como um autor-testemunho da modernidade tardia brasileira. Esse o conteúdo de idéias a partir do qual, a meu juízo, a crítica pode empreender a compreensão da literatura do autor de Diário de um mago.
CARTONADOS EM LEIPZIG
O caso de Adolfo Caminha (por exemplo) é conhecido: vida atribulada, literatura panfletária - e, no entanto, de qualidade.9 Caminha é o marginal bom. Coelho é o marginal mau, desprezado pelos intelectuais brasileiros, que, ao contrário dos estrangeiros, não o lêem e não gostam. No plano da crítica, isso faz a balança pender a favor da crítica é interessar-se pela literatura viva – o conjunto de autores que se lêem. Uma coisa é o gosto do crítico (ou do professor de literatura), outra é seu dever normativo (por assim dizer) e no caso do professor de literatura, pedagógico. Paulo Coelho é ruim, mas isso não pode ser concluído de antemão, nem servir de pretexto para excluí-lo dos programas de cursos. A negação não suprime a coisa negada, mas o negador.
Por que os professores de literatura denegam - que é mais do que negar - Paulo Coelho?
A resposta é complexa, mas começo pela hipótese material. Enquanto professores de literatura, funcionários de faculdades de letras, organizados burocraticamente em departamentos, eles poriam em risco seus empregos se tivessem liberdade para dizer o que é literatura. O que é literatura está definido previamente, de forma coercitiva, pela instituição faculdade de letras. A instância burocrática "departamento" exerce a função de proteger essa definição tácita, funciona como um sistema preventivo de crises da definição. Como toda ideologia, aquela definição se institui aos olhos dos usuários como verdade insofismável.
Essa é a base material da definição de literatura com que trabalham os professores de literatura das faculdades de letras- é ela, em última instância, a fonte, o oikós, da ética profissional que Ihes permite aceitar uns autores (Rubem Fonseca, por exemplo) e recusar outros (Paulo Coelho, por exemplo) como bons escritores.
A base material da definição de literatura não se restringe, contudo, à instituição faculdade de letras. Sua base ampliada inclui a materialidade do cânone, ou estante clássica, e, além dela, a do gosto literário individual. A estante é o conjunto de obras recomendadas como exemplares10 pela tradição, essa também de base institucional e, portanto, material. Na Colônia, mesmo não havendo mercado de livros, havia instituições (o Colégio dos Jesuítas, por exemplo; as academias e cenáculos) que perpetuavam e refundavam o cânone. Posteriormente, com a ampliação do aparelho de ensino, os manuais - como aqueles cartonados em Leipzig com que Aristarco atochava as províncias todo começo de ano" - e as "sebentas" propalavam a estante clássica. A estante é o campo de força dentro do qual, exclusivamente, se produz e reproduz incessantemente a definição do que é literatura. Seus zeladores principais são a Academia Brasileira de Letras e as faculdades de letras.
Mas há ainda, como disse, o gosto de cada professor: sua variação dá a impressão de liberdade na escolha do que é boa literatura e do que não é. Por que Clarice Lispector e não Zé Lins do Rego (por exemplo)? Caio Fernando Abreu e não Godofredo de Oliveira Neto? O gosto literário (que em geral se esconde sob a "objetividade" das ementas) transita entre os catálogos de cinco grandes editoras (no Rio e São Paulo) e as resenhas encomendas dos quatro suplementos literários (no Rio e São Paulo). Embora "livre", não é arbitrário.
Essa é provavelmente a principal razão de os professores de literatura denegarem Paulo Coelho: não consta da estante clássica. Sendo os cursos superiores de literatura agências ideológicas da reprodução da definição tradicional de literatura, os professores estão materialmente impossibilitados de transgredir essa definição. Esse o sentido da sentença terrível de Auguste Comte: "Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos".
É possível libertar os vivos do governo dos mortos?
O Barão de Itararé, aí por 1950, glosou a maldição de Comte: "Os vivos são sempre e cada mais governados pelos mais vivos”. Quem são os mais vivos, únicos capazes de vencer os mortos no governo dos vivos?
A MALDIÇÃO DE COMTE
É fácil notar no Brasil a enorme distância entre a literatura de entretenimento e a literatura culta (ou erudita, ou de proposta, como prefere Umberto Eco). Não é a mesma distância entre a literatura oral e a escrita dos primeiros séculos, mas uma novidade criada pela indústria cultural. Na literatura culta, a singularidade de cada autor é imprescindível, é o seu estilo - na aparência uma virtude abstrata, na realidade a maneira peculiar com que cada escritor formata (vá o neologismo) sua experiência do mundo. Nenhum leitor culto confunde Alejo Carpentier com Graciliano Ramos (digamos) e não apenas porque um escreveu em espanhol e fez de Havana seu cenário principal, o outro em português e assentou seus melhores romances em Alagoas. Já na literatura de entretenimento (ou de massa) a singularidade do autor é desnecessária, seria um estorvo, uma vez que seu objetivo é satisfazer - com emoções lights e questionamentos diets - o maior número de leitores. Como produto da indústria cultural, visa a economizar a libido dos consumidores - esse é o significado principal de entreter, que se manteve melhor, aliás, no inglês (entertainer é o anfitrião e também aquele que introduz os atores em cada cena do espetáculo, precisamente o que se espera do autor desse tipo de literatura: que apenas introduza, sem singularidade autoral). A literatura de proposta (culta) é, ao contrário, a que põe problemas explícita ou implicitamente, diante do leitor, para que ele o solucione virtualmente.12
A distinção (que reduzi deliberadamente a dois elementos: singularidade e problematização) não significa que a literatura de massa desconheça completamente os atributos da outra, e vice-versa, muito pelo contrário: o conjunto da produção literária (de uma época ou de um país) pode ser vista como um continuum que a crítica literária e o ensino de literatura devem considerar - se de fato desejam escapar à maldição de Auguste Comte. Memórias de um sargento de milícias, que traz a marca de seu autor, é de entretenimento ou de proposta? E Senhora, que funcionaria bem como script da novela das oito, acaso não problematiza a "moda" da ascensão social no Segundo Reinado etc.? A separação das duas espécies só se deu mais tarde. O Modernismo, ainda que buscasse a identidade e a raiz nacional, é que alargou o fosso - o povo nunca tolerou o verso livre; e um criador como Oswald de Andrade tinha relativa razão ao dizer que produzia um biscoito muito fino para o sabor popular. Ao vencedor, as batatas: a radionovela será o teatro dos pobres.
Com a indústria cultural (que coincide13com a chegada do Modernismo), se rompe o continuum de literatura de entretenimento (ou de massa) e a outra. Os professores brasileiros de literatura crêem estar lidando com fenômenos antagônicos - professores brasileiros porque só aqui o leitor não se formou por etapas sucessivas, só aqui ele não passou de "autores fáceis", como Defoe (1660-1731), Manzoni (1785-1873), Emily Brontê (1818-48), Dumas, pai (1802-70), para os "difíceis", como Thomas Mann (1875-1955), Dostoiévski (1821-81), Henry James (1843-1919) etc. Não se formou aqui o público de classe média, minimamente instruído, que consagraria, nos países de formação nacional "normal"14, bons autores “fáceis” como H. G. Wells, Edgar Wallace, Rafael Sabatini, Aghata Christie e tantos outros. Como se vê, foi um "corte epistemiológico” e, enfim, um “pedagógico”. Os professores brasileiros de literatura tenderam a valorizar unicamente a forma literária dos autores cultos, distanciando-se de vez da literatura de entretenimento. Permanecem cegos aos degraus intermediários do "masscult” (os romances da série "Sabrina", por exemplo) e do "midcult” como os romances de Jorge Amado).15 Perdem-se em juízos de valor antes de submeterem o material disponível - a literatura que se lê - análise e classificação.
Pois é certo que a literatura de problematização (ou culta, ou erudita, ou simplesmente “a literatura”) também é de entretenimento, embora de natureza mais sutil.16 Um leitor de Clarice Lispector, ou de Raduan Nasser, procura em seus livros o mesmo que uma operária ao comprar numa banca de jornal seu "Perry Rhoden" ou um executivo seu Sidney Sheldon na livraria do aeroporto: entreter-se. E o leitor de Paulo Coelho? Àquela alienação básica ele apenas acrescentou a moda de nosso tempo: o angelismo.
Sendo essas as circunstâncias brasileiras, como proceder o professor universitário de literatura?
Há uma questão de ética, para começar. Com as baionetas, disse Napoleão, se pode fazer tudo menos sentar em cima. Com o conhecimento, é possível: se pode saber e nada fazer. Só esse niilismo explica que acadêmicos desconheçam a literatura de entretenimento e continuemos a trabalhar como se nosso aluno estivesse no patamar de amante da "boa literatura". Só esse niilismo explica as "análises de poemas" - equivalentes eruditos dos questionários que as editoras encartam nos romances -, transformando o prazer da leitura em obrigação. Só o niilismo explica que se despreze a literatura infanto-juvenil nos cursos acadêmicos, quando é ela um setor vigoroso da literatura de entretenimento no Brasil, desde Lobato até Ana Maria Machado. No caso do poema, tudo o que o professor deveria fazer era dar ao aluno as técnicas de análise, supervisionando cautelosamente seu uso. Nada mais contrário à fruição do poema do que sua "análise", cabível apenas quando o estudante de letras for conquistado para o mundo da poesia. Enfim, só o niilismo explica a denegação dos best-sellers, essa exacerbação da literatura de massa. O niilismo pedagógico não passa de uma versão do abandono do povo brasileiro pelas suas elites.
INVERNO DE 64
Tive na faculdade um colega que datava seus poemas: "Primavera de 62", "Outono de 61" e assim por diante. Ríamos dele, mas hoje compreendo que era parte de seu esforço para ser reconhecido como poeta. Ele recorria a um arsenal de formas literárias - explícitas, como a que nos fazia rir, ou recalcadas - que chamarei pedantismo.
No italiano antigo,17 pedante era o soldado de infantaria que combatia a pé, também chamado peão. Por extensão designava o mestre-escola, que, acompanhando crianças a pé - espécie de peão permanente -, lembrava aquele. Tinha uma conotação pejorativa: nada mais tolo (um soldado a pé) e ao mesmo tempo pretensioso (ensinar). O mestre-escola não passava de um acompanhante de meninos (um peão), mas assumia ares de pedagogo, valorizando com regrinhas e vocabulário difícil. Ora, no pedantismo como forma literária estão presentes as duas coisas: a pretensão e a pedagogia da pretensão. Meu colega poeta era um poeta-peão que forçava o ingresso no grêmio dos poetas-pedagogos18 aplicando uma de suas regrinhas: "Inverno de 64" ...
O pedantismo não é, pois, afetação inocente. Sua função principal é promover e garantir a filiação dos literatos à ideia tradicional de literatura, apresentando sua história – e seu ensino - como sucessão de escolas literárias no âmbito daquela idéia tradicional. Pedantismo é a fetichização do estilo19 que começa (digamos) com a "Ensynança de Bem Cavalgar Toda Sela” de EI-Rei D. Duarte (1391-1438) e vem filiando, desde então grandes escritores, chefes de escola, mestre de bem escrever, clássicos da língua e literatos em geral. Ser “escritor” é se emendar (e se ementar) nessa fileira, integrar a estante clássica, vestir a camisa de EI-Rei D. Duarte: “Ca som alguus boos caualgadores dhuãs sellas queo som doutras “...
Sua face visível, fácil de criticar, são as “regrinhas” e "vocabulário difícil" que, no entanto a crítica deve isolar da linguagem da época - para atinar com o pedantismo de um Teixeira e Souza (1812-1861), por exemplo, seria preciso descontar o que não é literário, mas propriamente filológico em seus romances.20 Feito o desconto, Teixeira e Souza não passou de literato, não foi um escritor. O pedantismo funcionou para ele como para meu colega dos invernos e primaveras, emendou-o na fieira de autores a que chamamos literatura brasileira – é o complexo de Gondim.
Paulo Honório (o narrador de São Bernardo) quando quis contar sua vida procurou peritos literários: "Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho". Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; para a composição literária, convidou Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor de uma revista. João Nogueira, que desejava o romance em língua de Camões, com períodos formados de trás para diante, foi logo dispensado. Com o literato Gondim tudo correu bem, até que vieram as primeiras laudas: "Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma!"
O perito respondeu que um artista não pode escrever como fala:
Foi assim que sempre se fez. A literatura é a literatura, seu Paulo. A gente discute, briga, trata de negócios naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa. Se eu fosse escrever como falo, ninguém me lia.21
Tal e qual meu ex-colega dos invernos e primaveras, o pedantismo de Gondim o filiava à literatura brasileira, não podia abrir mão dele.
A face visível do pedantismo foi caricatura, entre outros, por Lima Barreto, que, recusando deliberadamente asfórmulas pedantes e, por vezes, a gramática,22 acabou perseguido pela fama de "mau escritor". Em Isaías Caminha e em Policarpo Quaresma e emdiversas crônicas, articularia o pedantismo (como eu o chamo) ao que chamava bovarismo e à mania de doutor: "Ah! Doutor! Doutor! ... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos...”23 Armando, o médico de Olga (afilhada de Policarpo Quaresma) queria entrar para a literatura. Inventou um truque. Escrevia modo comum, com as palavras e o jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picava o período com vírgulas e substituía incomodar por molestar, ao redor por derredor, isto por esto, quão grande ou tão grande por quamanho, sarapintava tudo de ao invés em pós, e assim obtinha seu estilo clássico. Gostava muito da expressão “às rebatinhas". Usava-a a todo momento e, quando punha no branco do papel imaginava que dera ao seu estilo uma força e um brilho pascalianos e às suas ideias uma suficiência transcendente.
Agora bem, que função ideológica (para não dizer social)desempenha esse pedantismo pueril? Ele é a forma antiga, garantidora da continuidade do passado: ao filiar o escritor aos escritores anteriores, desfilia da sociedade atual. É a institucionalização do pedantismo, pois a continuidade da instituição escola, dispensando a história real, que se manifesta por meio de transformações no “conteúdo de idéias” (Lucien Goldmann) e não de simples inovações formais? O compromisso do escritor com a história (essa base de todo o realismo em arte) é que pode derrocar a instituição escola e, com ela, o pedantismo. Só pode ser intelectual de “ novo tipo”, isto é, porta-voz de situações presentes, quem supera o pedantismo. Quem se põe como intelectual “de modo” antigo”, seja por administração pueril pelos intelectuais do passado, seja por dificuldade em se desligar dele, é uma caricatura de intelectual (como meu colega, aspirante a poeta).24
A sucessão das escolas é, desse jeito, o movimento aparente da literatura. Monteiro Lobato - um midcult - demonstrou perceber isso em Urupês, ao desqualificar o "caboclismo" do começo do século como permanência do indianismo. Não via mudança histórica entre um e outro:
O cocar de penas de arara passou a chapéu de palha rebatido à testa; a ocara virou rancho de sapé; o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda troxada; o boré descaiu lamentavelmente para pio de inambu; a tanga ascendeu a camisa aberta ao peito. Mas o substrato psíquico não mudou: orgulho indomável, independência, fidalguia, coragem, virilidade heróica, todo o recheio em suma, sem faltar uma azeitona, dos Peris e Ubirajaras.25
COMPAIXÃO
O pedantismo aparece inicialmente como forma, estilo e linguagem. Isso significaria que o contrário do pedantismo é o vanguardismo? É possível que vanguardismos radicais, como o concretismo, a música dodecafônica, o nouveau-roman, superem a alienação que constitui o fundo de toda arte e literatura: eles suspendem o jogo esperado-inesperado e torna intenso e, ao mesmo tempo, equalizando todas as expressões artísticas da Vila, Thomas Mann e Morris West, Picasso e o grafiteiro do bairro. Contudo, o vanguardismo é uma hipótese autocontrariada, um filisteísmo necessário mas impotente, que acaba por revitalizar o que pretendia matar. O compromisso (quase diria ética) da vanguarda é com o mesmo lugar da tradição; pedantismo e vanguardismo são pólos do mesmo campo de força.
O pedantismo não é, porém, forma, estilo e linguagem. Seu significado é dominação ideológica. Ele apresenta como literatura o que nada mais é que unificação da sociedade por meio da língua artística. Machado de Assis nunca foi professor e gramático, mas sua prosa instituiu, há cem anos, o paradigma de ensino nacional da língua. Ninguém escreve como Machado, mas ele é a referência, está lá, como o farol de Virgínia Woolf. O que se chama literatura, nas academias, faculdades e curso de português é, pois, uma política da língua.
Os escritores que superaram o pedantismo, desde o começo do século, foi por terem formado uma comunidade de destino com os excluídos da literatura. Comunidade de destino: sofrer de maneira irreversível, sem possibilidade de retorno à antiga condição, o destino dos sujeitos observados.26 Lima Barreto chamou de compaixão esse movimento do espírito em direção a seus sujeitos. A compaixão, que se manifesta pela forma não não-pedante, é, assim, a negação do pedantismo. Eles travam uma luta ideológica e textual, como se vê no próprio Lima, compassivo nos romances e contos, pedante nos diários e na memorialística.
CONCLUSÃO
Este pequeno ensaio nos levou longe - e ao menos por isso perdôo a Paulo Coelho o estrago de meu curso em Lyon. Para desentranhar o significado de sua literatura, é preciso lê-lo,por pior que a princípio nos pareça. Isso, porém, não basta: o significado de um texto está necessariamente fora do texto. Um automóvel é feito de borracha, vidro e metal, mas seu significado não é borracha, vidro e metal, mas meio de transporte.
O que pode parecer ao leitor uma digressão foi metodologicamente necessário à crítica da crítica ao autor de Diário de um mago. A digressão - fomos a Giddens, a Machado, a Graciliano, a Lima Barreto, a Lobato etc. - expôs a crise do ensino universitário de literatura e o pedantismo enquanto forma literária. Como advertia Brecht, não devemos partir das coisas boas e antigas, mas das ruins atuais. Se o aluno que temos não ultrapassou o nível do midcult, esse deve ser nosso ponto de partida.
As duas perguntas que me desafiam, desde aquela manhã em Lyon, podem ser sumariamente respondidas como se segue.
Paulo Coelho, o medíocre, deve seu sucesso à sua perfeita contemporaneidade: é um perito de rosto confiável do esoterismo triunfante na era da Internet (esoterismo e Internet são expressões do mesmo "conteúdo de idéias"). Ele é o Dumas, pai, do shopping center global. Muitos concorreram a esse posto, mas nosso conterrâneo ganhou (ainda que escrevendo na língua “em que Vênus bela, quando imagina, com pouca corrupção crê que é a latina”?27):
1) por ser um gênio do marketing;
2) por possuir talento narrativo.
Por que os professores de literatura o achamos tão medíocre? Para começar, porque não o lemos. O resultado é a síndrome de Tchen (o terrorista de A condição humana, de Malraux): atirar no que viu e acertar no que não viu. Paulo Coelho é de fato medíocre, mas não do ponto de vista do pedantismo - o conjunto de formas e artifícios que assegura a continuidade da superestrutura anterior no quadro histórico presente - , maneira “boa e antiga”. Para superar a maldição de Comte (os mortos constrangerão para todo o sempre o cérebro dos vivos), penso haver um caminho: a libertação pelos mais vivos, os leitores reais. Eles se apresentam à nossa frente sob a forma de alunos concretos, consumidores da indústria cultural. São eles o "novo e ruim" de que falava o autor de O senhor Puntila e seu criado Matti.
Rio de Janeiro, 22 de dezembro de 2000.
1 Gore Vidal conta que numa cidadezinha do Meio-Oeste, após uma conferência (anos 70), uma velhinha pediu para lhe fazer duas perguntas: "Primeira: O que posso fazer aqui, neste canto de mundo, para combater o comunismo? Segunda: O que é comunismo?".
2 Inverti o título feliz de Alain Buisine, L\'Ange et La souris. Paris: Zulma, 1997.
3 Lembram do Raposão (A relíquia) humilhado no hall de um hotel em Alexandria quando um hóspede à sua frente se assinou "Dr, Topsius - da Imperial Alemanha"? Raposão arrebatou a pena e assinou: "Raposo, Português, d\' Aquém e d\' Além-Mar".
4 Ver "O Manifesto de 2001", in Revista 2001, Rio de Janeiro, abril de 1972; Paulo Coelho por ele mesmo, São Paulo: Martin Claret, s. d.; Confissões de um peregrino, Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
5 Para a íntegra da circular, ver, entre outros: Lobato, Edgard. Monteiro Lobato: vida e obra, v. 1.
6 Tanto é assim que o interesse dos editores, em geral, se limita ao lançamento do livro. A estratégia é lançar muitos autores que vendam, cada um, acima de (digamos) cinqüenta exemplares no lançamento. Éo velho temor ao capital fixo.
7 Ver Giddens, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
8 Como se sabe, a expressão foi usada como categoria, pela primeira vez, por Guy Débord em A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
9 Miguel-Pereira, Lúcia. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro, v. XII, 2 ed., p. 173: "Mas esse livro [Bom Crioulo], ousado na concepção e na execução, forte e dramático, humano e verdadeiro, é, a despeito dos senões apontados, com O cortiço, o ponto alto do naturalismo [ ... ]. Até o mau gosto por vezes desagradável de Caminha como que torna mais convincente a triste condição dos homens que evoca [ ... ]".
10 O primitivo sentido de "clássico" é: aquele que deve ser imitado.
11 "Eram boletins de propaganda pelas províncias, conferências em diversos pontos da cidade, apedidos, à sustância, atochando a imprensa dos lugarejos, caixões, sobretudo, de livros elementares, fabricados às pressas com o ofegante e esbaforido concurso de professores prudentemente anônimos, caixões e mais caixões de volumes cartonados em Leipzig, inundando as escolas públicas de toda parte com a sua invasão de capas azuis, róseas, amarelas" etc. Pompéia, Raul. O Ateneu. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1956, p. 8.
12Dou como bom exemplo o "caso" do imperador Adriano com Antínoo, "proposto" por Marguerite Yourcenar (Mémórias de Adriano. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 7 ed., 1980). Mesmo o leitor heterossexual vivencia o romance e seu desfecho trágico. O talento de Yourcenar foi capaz de seduzir-nos (no sentido latino de “desviar do caminho”).
13 "Coincide" é um modo de dizer. Ambas são manifestações da mutação histórica provocada pelo capitalismo financeiro e a revolução tecnológica (o automóvel, o telefone, o rádio etc.).
14 "Normal" por oposição a tardia e inconclusa, como é nosso caso.
15 Um mesmo autor pode produzir um livro de "nível médio" (midcult), como o Hemingway de O velho e o mar, e um de problematização, como o Por quem os sinos dobram.
16 É também a opinião de José Paulo Paes, em "Faz falta uma literatura brasileira de massa", Folha de São Paulo, Ilustrada, 8/10/1991.
17 Ver Machado, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa, 2. Lisboa: Editorial Confluência, 1967, v. III; e Nascentes, Antenor. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1932. Devo essas informações a meu colega Wellington de A. Santos.
18 Todo escritor é um pedagogo, pois se iniciantes.
19 "São [os literatos] em geral de uma lastimável limitação de idéias, cheios de fórmulas, de receitas, só capazes de colher fatos detalhados e impotentes para generalizar, curvados aos fortes e às ideias vencedoras, e antigas, adstritos a um infantil fetichismo do estilo e guiados por conceitos obsoletos e um pueril e errôneo critério de beleza". Barreto, Lima. Recordações do escrivão Isaias Caminha.São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 120.
20 O filho do pescador (1843), As tardes de um pintor ou As intrigas de um jesuíta (1847), Gonzaga ou A conjuração do Tiradentes (1848), Maria ou A menina roubada (1852-53), A providência (1854) e A fatalidade de dois jovens (1856).
21 Ramos, Graciliano. São Bernardo. São Paulo: Martins Fontes, 11 ed., 1969, p.63.
22 Lembram de Lobo, o gramático de O Globo, caricaturado em Isaías? Acabou no hospício, mudo, tapando os ouvidos com as mãos. Um interno, ouvindo-o recitar Dom Duarte, perguntou: que língua é esta? Lobo atirou o livro no chão e encheu de murros o coitado.
23 Barrete, Lima. Recordações do escrivão Isaias Caminha. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 54.
24 O leitor terá notado que me baseei em Gramsci sobre a função do pedantismo em filosofia. Ver Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, v. I, p. 221 e segs., e p. 288 e segs.
25 Lobato, Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1962, p. 278.
26 A definição é de Jacques Loew, citada por Eclea Bosi, Cultura de massa e cultura popular. Petrópolis: Vozes, 1986, p.14.
27 A bazófia é de Camões.