Publicação original: 1993por Joel Rufino dos Santos
Os direitos humanos e seus limites
I
Tempos atrás um crioulo chamado Jorge foi preso pela 18º DP. Confundiram-no com um fugitivo. Alegou trabalhar como vendedor de bolinha de sabão na Quinta da Boa Vista. Foi pro pau. Descoberto o engano, os detetives mandaram-no embora, vestido de mulher e com a cara pintada de pasta de dente. A quem se queixar? Informaram-no de que havia uma Secretaria de Defesa e Promoção das Populações Negras, "criada pelo Brizola". Agimos prontamente: os policiais foram administrativamente punidos, enquanto se abriu o processo com base na Lei anti-racismo, dita Lei Caó. Aparentemente o episódio estava encerrado.
Na verdade, não. Ele expõe uma tara que necessitamos compreender, ou nada vale a pena, nada dará certo no Brasil.
Temos 500 anos de vida. A escravidão, um regime de tortura por definição, durou aqui 400 anos, 4/5 portanto da nossa existência. Aí está provavelmente a razão pela qual a tortura aqui é natural. Negro, negão, preto, crioulo são variações de um nome: designa o que deve ir pro pau. Claro que um branco reles também pode ir pro pau, zonas por contingência. Da mesma forma numa delegacia francesa pode um detido receber uns tapas, mas não há no armário um pau-de-arara esperando o suspeito (e crioulo é outro nome brasileiro para suspeito). Negro é um nome que temos para criatura torturável. A indignação que teve a nação com os torturados da ditadura militar se explica também por aí: aqueles não eram torturáveis.
Essa a razão histórica, mais ou menos visível, para a naturalidade da tortura no Brasil. Há outra, contudo: os direitos humanos seriam um conceito estranho à psicologia social do novo brasileiro. A se confirmar essa hipótese não adiantará malhar em ferro frio: continuaremos machistas, avançadores de sinal, sedutores de colegas de ministério, torturadores, etc. Hipótese terrível. Terrível e instigante: em 1979, em Bangkok, a UNESCO "provocou" especialistas de diversas culturas com a seguinte questão: "são os direitos humanos um conceito ocidental?" O Dr. Raimundo Panikka, da Índia, deu uma resposta que é uma pista interessante para o caso brasileiro: sim, são. Da Magna Carta, em 1215, à "Declaração Universal" da ONU, em 1948, passando pelo Bill of Rights, pela Enciclopédia e pelas Declarações de 1789, francesa, e de 1798, americana, a história dos direitos humanos é a história da civilização ocidental. Junto com o racionalismo, o individualismo, o antropocentrismo e o tecnologismo, eles constituem o ethos do Ocidente moderno.
Podem os povos não-ocidentais assimilar os direitos humanos? - é a questão decorrente. Como imposição, não. Há aí duas situações: 1) a imposição dos direitos humanos sem os outros conceitos (racionalismo, individualismo, etc.); e 2) a imposição dos direitos humanos junto com os outros conceitos. Em ambas as situações, embora a primeira seja mais difícil, a imposição não passará de imposição de um contexto cultural sobre outro. Fadada, portanto, ao fracasso. Direitos humanos impostos nada mais são que justificação para a dominação do mais forte, do mais rico, do mais letrado, e assim por diante. Nesse caso, a sua rejeição se confundirá com a luta pela justiça social. Tome-se o exemplo de um policial negro e pobre acostumado a bater (barbarizar, dizem eles) em presos. Se nós os ocidentais obrigamos a respeitar os direitos humanos do preso, imediatamente lhe virá à cabeça que fazemos isso por sermos ricos, formados e poderosos. Sempre que puder burlar a nossa vigilância, ele será mais violento com o preso. E assinará as listas pela pena de morte do senhor Amaral Neto. (Dou de suposto que: 1) ocidental e moderno são a mesma coisa; e 2) que há no interior da sociedade brasileira, mesmo na cidade, contextos culturais arcaicos, em geral populares e iletrados.) Como a democracia pode ser imposta e continuar democracia? - eis o problema.
A questão seguinte é: sem embargo de ser um conceito ocidental, os direitos humanos são justos? A resposta é afirmativa, desde que circunscrita. No Ocidente moderno, racionalista, antropocêntrico, individualista e tecnologista, esse conceito tem realizado o máximo de dignidade e felicidade humana possíveis - mas é bom não esquecer os bolsões de torturante miséria no Primeiro Mundo. Nos limites desse contexto cultural - a megamáquina - sua ausência gera a fome e o pau-de-arara. Supor, contudo, que tenham o mesmo efeito em outros contextos culturais é render-se ao universalismo mais vulgar, tomar o que deu relativamente certo aqui como verdadeiro e eficaz para toda espécie. Há muito essa foi deixada exclusivamente aos missionários.
Se os direitos humanos não são transplantáveis, somos tentados a buscar nos outros contextos culturais o seu equivalente. Guardemo-nos, porém, das equivalências: são um exercício de supremacia. Brama não é Deus, Exu não é Satanás. Panikkar propões no lugar da equivalência a homeomoformia. "As duas palavras Brama e Deus, não são nem análogas, nem simplesmente equívocas (nem unívocas, naturalmente) elas são homeomorfas. Elas desempenham um certo tipo de função, manifestando uma correspondência nas duas diferentes tradições, no seio das quais estas palavras vivem”. Outra definição sumaria: homeomorfia é uma analogia funcional existencial.
Uma das descobertas de Marx foi que os Direitos do Homem são direitos de classe. Numa sociedade em que os homens não se inserem por classe, mas por casta. (Como na Índia e na África), ou por ordem (como no Brasil), aqueles direitos são um conceito fora de lugar. As próprias noções de classe, casta e ordem são aliás ocidentais modernas, encontrando o seu homeomorfo – não o seu equivalente nem o seu análogo – talvez na noção de pertencimento. Tome-se o exemplo dos avançadores de outro por falta de repressão legal. O que lhes falta precisamente é o princípio – a noção ocidental de lei como equalizador das diferenças entre os membros do grupo, Ordem suprema que coíbe os ciúmes desagregadores: narcisista que sou, não suporto a liberdade do outro de avançar sinal e instituo o Código de Trânsito em divindade. O homeomorfo de direito no contexto cultural brasileiro é provavelmente privilégio. O conceito de direito não existia em nenhuma das culturas formadoras da brasileira – nem mesmo na metropolitana ibérica. Não é novidade.
Se o Brasil tendesse à modernidade tudo estaria resolvido: os Direitos Humanos acabariam por chegar num pacote. Mas não tende. O neoliberalismo de Merquior, Collor e Roberto Freyre patina por isso no vazio. Foi se não me engano durante a campanha pelo governo de São Paulo que Antônio Ermírio, em briga com Maluf, sugeriu: o capitalismo aqui é selvagem porque veio sem a ética protestante. O Brasil é provavelmente uma combinação peculiar de moderno e arcaico - e arcaico aqui sem o sentido neocolonialista corrente. Essa a matéria-prima fascinante que temos para construir um país socialmente justo.
A última questão é: existem nas culturas não-ocidentais instrumentos conceituais para realizar a função - essa sim universal - de convivência feliz com o outro? Para os missionários, não. Caem também nessa armadilha dos Direitos Humanos universais muitos militantes sinceros pela democracia no Brasil. É o caso do Movimento de Mulheres, que só vê tirania e opróbrio na poligamia africana, sem aceitar que possa realizar a harmonia e o equilíbrio das trocas sexuais. Tomam, por exemplo, a cauterização do clitóris - uma tara pontual do sistema - para condenar o todo. Na realidade, a poligamia é o homeomorfo - não o equivalente - da monogamia ocidental. É possível ser feliz dentro de ambas.
Voltando ao caso do negro torturado na 18º DP, há três atitudes possíveis: 1) Encará-lo com naturalidade. É a atitude reacionária; 2) Condenar o torturador, in limine. É admitir o nosso direito a impor conceitos e valores a um pobre e iletrado. Em vão, pois, fora da nossa vigilância, ele voltará a torturar; 3) Condenar o torturador por dois códigos: O Penal, coercitivo e de alcance limitado; e a Ética, que só pode emanar do interior da sua cultura. Ou para usar a categoria homeomorformia, de Panikkar: partir de um valor que no seu contexto cultural sirva à função de justiça social e felicidade humana. Essa única fonte de Ética possível. A demogracia só pode ser a convergência de homeomoformias funcionais da felicidade e justiça social. (Repercutiu em Salvador, no fim do século passado, o "crime" de uma africana que para punir o filho por um pequeno furto lhe mergulhou as mãos em água fervente. Condenada, saíram em sua defesa alguns intelectuais, inclusive Nina Rodrigues: a ética e o código daquela mulher não eram os "nossos”).
Em conclusão: os Direitos Humanos só nos podem ajudar a sair da crise se encontrarmos o seu homeomorfo na cultura popular brasileira – que é de onde emergem os torturadores, os avançadores de sinal e os bandidos geral. Eles emergem também das elites modernas, mas por outro motivo: a perversão da modernidade. As elites, nesse sentido, são piores que o povo: transgridem o que internalizaram ou o que simulam haver internalizado. Realizam o capitalismo sem a ética protestante, no dizer de Antônio Ermírio.
Mas existirão, de fato, homeomorfos dos Direitos Humanos na cultura popular brasileira? Penso, com Panikkar, que a diferença maior entre a cultura ocidental e as que lhe estão subordinadas – como a nossa popular - está no conceito de pessoa. (Gosto também da metáfora que faz Panikkar dessa diferença: “um indivíduo é um nó isolado; uma pessoa é todo o tecido que está em volta deste fragmento do tecido total que forma o real. (...) É inegável que sem os nós o tecido desfar-se-ia; mas sem o tecido, os nós nem sequer existiriam”.) Um Homem e uma mulher só terão os mesmos direitos e deveres se os considerarmos pessoas-indivíduos. Se os considerarmos pessoas-entidades – pertencentes a ordens distintas - seus direitos e deveres serão diferenciados. Isto significa não haver justiça e felicidade entre eles? Um ingênuo militante dos Direitos Humanos sequer admitiria esta pergunta.
O horror que nos causa a tortura não pode ser encarada unicamente pela ótica dos Direitos Humanos. Se for assim, o torturador jamais o experimentará. Temos de descobrir, algum dia, o que torna a tortura também um horror do ponto de vista dele. É a chance dos pobres e pretos desta terra.
II
Anos atrás Lévi-Strauss fez um vaticínio terrível: as culturas se afastam à velocidade da luz. É esse um tema obsessivo da Antropologia, mas não estamos diante de uma questão acadêmica. Num plano aberto estão em jogo a dignidade e a felicidade da espécie, no mais fechado a possibilidade de uma teoria desalienada do Brasil – de que decorrerão corretas estratégias de justiça social e realização cultural para o povo brasileiro. Questões portanto de filosofia e ciência política.
Na parte I deste estudo, fiz uma provocação: Os Direitos Humanos não passam de uma janela ocidental e moderna sobre a dignidade e a felicidade do homem. As culturas arcaicas presentes no Brasil atual têm outras - homeomorfas daquela - que também dão sobre a mesma paisagem. Só olhando de todas, poderemos divisar a totalidade da paisagem - e elaborar as estratégias de cura eficaz das nossas taras, como a tortura, por exemplo. Nesta parte II discutirei algumas possíveis objeções ao meu ponto de vista. Na III vou sugerir algumas pistas teóricas - um programa de estudos - que nos ajude a vencer o impasse: em que atualmente se acha a luta pelos Direitos Humanos. Pois na verdade essa luta chegou a um impasse: falamos como papagaios a urubus que não nos entendem.
Primeira objeção: refletir sobre os limites dos Direitos Humanos é um diversionismo, enfraquece a luta
pela democracia e justiça social. É renunciar, em suma, os Bushes, Mestrinhos e Amarais Netos.
Contra-objeto que o silêncio sobre nossas fraquezas custou caro, até no plano pessoal: um velho amigo comunista surtou ao ver pelo Jornal Nacional uma fila para o McDonald\'s de Moscou. Quem teme enfraquecer a luta se se discutem os limites de um conceito é por supor que ele está bem aplicado e vem resultando em avanços: em time que está vencendo não se mexe. Ocorre que o time está perdendo. Patinam os partidos e os movimentos sociais - o Eclesial de Base, o Negro, o de Mulheres, o Sindical, o dos Sem-terra, tão promissores há vinte anos. Pela boca dos seus próprios atores se confessam moribundos. Já não é só o país que morre, morrem juntos os que pensaram salvá-lo. Acabamos, pois, condenados à derradeira forma de liberdade: a confissão dos pecados.
Há um corolário dessa objeção que aceito integralmente: se nas condições brasileiras os Direitos Humanos são uma bandeira precária, é preciso buscar imediatamente outra, ou caímos no pior: a paralisia. Essas reflexões são a minha contribuição de urgência.
Segunda objeção: a modernidade ocidental não se reduz à tradição liberal individualista, racionalista, antropocêntrica, etc., esta de fato estranha ao patrimônio cultural do nosso povo. É integrada também pelo socialismo marxista e pela tradição católica do bem comum.
Aceito, em termos. Quanto ao primeiro, não é certo que rompa com aquela tradição, mas que a prolongue - como dizia Weber, o marxismo reforça, por via da linha de classe, as grades do individualismo burguês. Quanto ao princípio do bem comum - esse antecedente pré-moderno dos Direitos Humanos - jaz sepultado junto com a vertente ibérica do Ocidente sob o brilhante edifício anglo-saxônico: Santiago de Compostela sob o Empíre State Building. Pode ser exumado de lá para nos ajudar a compor uma nova cultura arcaico-modema? Seria o bem comum uma analogia funcional existencial dos Direitos Humanos? Talvez.
Terceira objeção: o que há no espaço ocidental (incluindo a África e a América), e principalmente no Brasil, são culturas híbridas. O terreno onde se poderiam localizar homeomorfos dos Direitos Humanos estaria portanto minado. A modernidade ocidental penetrou e corrompeu para sempre os contextos culturais arcaicos que porventura pudéssemos ter.
Aceito também em parte essa objeção. A própria cultura dita moderna ocidental está contaminada dos seus contrários; e no Brasil o espaço urbano - como mostrou Muniz Sodrê -, moderno por definição, é permeado pelo terreiro afro-brasileiro com seus sentidos e signos. Se representamos, contudo, a fricção cultural por uma linha, segmentos dela indicarão a mistura e outros a separação, ocorre que no Brasil, por razões ideológicas, prestamos atenção apenas ao primeiro segmento. Não queremos ver que o sincretismo religioso, por exemplo, vai até um certo ponto: possessão e ascese, sacrifício e graça, axé e criação, dissolução no rio do tempo e apropriação do tempo permanecerão sempre antagônicos. Na verdade, se Lévi-Strauss tem razão, quando acabarmos de ler este ensaio estarão ainda mais distantes.
A quarta e última objeção que percebo ao meu ponto de vista - haverá outras fora do meu alcance - é a
que leio num ensaio estimulante de Wilson Nascimento Barbosa, "Ginga". Ele começa negando que os direitos humanos sejam uma construção da cultura ocidental - resultado de uma luta cotidiana das massas do Ocidente - e, portanto, incapaz de ser cedida ou legada a culturas não-ocidentais. Recorda, de passagem, que Hitler costumava denunciar os direitos humanos como invencionice judaica para submeter a maioria à minoria.
"Admitida" - escreve ele, sem concordar - "a intransmissibilidade cultural, o dualismo na cultura brasileira estaria assim compreendido pela oposição entre: (a) a tradição cultural européia, capaz de absorver os direitos humanos; e (b) a tradição \'tribalísta\' de índios e negros, incapazes culturalmente de compreender e exercer os direitos humanos". Para Wilson esse seria um falso dilema, pois não há no Brasil uma cultura ocidental, nem se pode falar aqui em direitos humanos mas no seu simulacro. Esse modo de ver é uma objeção parcial ao que escrevi na parte I deste ensaio: os fracassos das elites brasileiras se devem a que negam o que internalizaram. Para Wilson elas nada têm dentro. Ou por outra: têm uma subcultura estática, aos pedaços, portados.
Desse jeito, sua hipótese é outra. Os Direitos Humanos não pegam no Brasil porque a sua fiadora, a burguesia branca, não tem "cultura criadora”. E por que não tem? Porque essa cultura não é tese (afirmação), mas antítese (negação) de outra, a cultura do negro brasileiro (em que ele destaca uma psicologia social peculiar). Sua chance de vir a existir é portanto através daquela cultura a que se opõe e historicamente reprimiu. No final, não existirão mais uma nem outra, a cultura negra e o seu oposto se aniquilarão para dar surgimento a uma cultura brasileira - não africana, nem francesa, mas de uma identidade nova.
Vejo semelhança entre esse ponto de vista e o meu. Hegelianamente, Wilson propõe uma estratégia aos movimentos negros: a negação da cultura negra, promovendo o egoísmo do negro a cidadão, a personagem portadora de reais direitos humanos. A cultura negra – Wilson parece concordar que séculos de hibridismo não a suprimiram - é uma das tais janela sobre o humanum a que me referi acima. Dela, como de qualquer outra, não se enxerga o todo, somente talvez mais que da janela ocidental e moderna pela qual temos teimado candidamente em olhar.
III
Terminei a parte I deste ensaio sugerindo que ou encontramos uma razão antitortura no universo do torturador ou não teremos chance de reverte a crueldade inata da sociedade brasileira. As pistas que dou a seguir lembram romance policial: como autor sei perfeitamente quem é o criminoso, mas me divirto encaminhando o leitor por diversas pistas, nem todas necessariamente quentes.
Primeira pista: o que é precisamente moderno e arcaico? Que objetos abarcam? O senso comum vê o arcaico como o primitivo do moderno: o moderno é o arcaico amanhã. Ocorre que ele é coetâneo do moderno: a teleportação, a metempsicose, o suingue, a negociação com o divino, o sensualismo, a sacralização do saber, a prevalência do eu coletivo, a transe, a literalidade (ou capacidade de encantar o mundo), etc., sobrevivem nos interstícios da modernidade desenvolvida. No brasil vai além: é o oceano que cerca a ilha moderna. Precisamos, portanto, de menos sociologia, menos ciência política e mais história da cultura: das nossas populações indígenas antigas mas também dos celtas, dos árabes pré-maometanos, e de outros arcaicos. Se nossos currículos abrissem mais espaço para os povos africanos, por exemplo, entenderíamos melhor a nossa formação nacional do que insistindo na descrição de um “sistema colonial escravista”.
Com categorias da história da cultura também estaríamos mais perto de desfazer alguns nós da história do Brasil- como esse, por exemplo, da inconclusividade da nação brasileira. De um ponto de vista ortodoxo, o fato de aqui o Estado não representar a sociedade - de a nação não se concluir, numa palavra - se deve à exploração de classe e à alienação popular combinadas. É só meia verdade. Isso tem a ver com a emergência, no começo do século, de uma "cultura da festa" conforme, parece, perceberam, entre outros, José Murilo de Carvalho, Roger Bastide e Peter Fry. A recusa popular de integrar a modernidade política - republicanismo, voto ideológico, etc. - indicam outra maneira de estar no mundo e por conseguinte outro padrão de acumulação e outra forma de inserção social. A recusa é uma forma de fazer política: arcaico, numa definição precisa, é a cultura do estado teocrático. O populismo incompreendido, a sociologia dialético-bandeirante (com a exceção talvez de Otávio Ianni), idem.
Por esse caminho desfaríamos certos nós da História do Brasil como os episódios de Palmares e Canudos - corpos estranhos se se pensa a História do Brasil como um longo caminho de colônia a nação. E mesmo de crítica literária, como os casos aparentemente insólitos do holismo de Machado de Assis e do germanismo de Cruz e Sousa - expressões provavelmente de negritude. Penso também que o impasse da nossa pedagogia hoje é descobrir a maneira pela qual a criança brasileira aprende. Supomos que só há a maneira moderna de aprender – e o resultado é que nada mais ensinamos. Para a terceira pista recorro de novo a Panikkar.
Ele nos descreve o Darma Indiano. O conceito é plurívoco, mas basicamente é "o que mantém, confere a coesão e, por ali, a força a toda coisa dada, à realidade, e em última análise aos três mundos (triloka). A justiça, por exemplo, é um darma: ela mantém juntas as relações humanas. Pois bem: num mundo em que a noção de darma ocupa um lugar central, como pode ter sucesso o “direito de um indivíduo contra o outro – como é pressuposto na teoria ocidental dos Direitos Humanos? Na índia - e no Brasil - o primordial passa a ser o caráter dármico (justo, verdadeiro, consistente...) de uma coisa de uma ação. Darma não é, pois ali uma categoria de direito social, mas moral e epistemológica. Cada indivíduo possui o seu svadarma, isto é, um fragmento do darma, que ao mesmo tempo contém o todo e se opõe a esse todo. Assim, o dever de cada indivíduo é definir seu lugar na sociedade e no cosmos: nisso consiste o seu direito humano. Panikkar sugere que esse svadarma pode ser homeomorfo do direito humano ocidental. Homeomorfo não quer dizer análogo nem correspondente, lembremos. O indivíduo ocidental é uma abstração, pois começa e termina em si mesmo. O indivíduo possuidor de svadarma é concreto, pois integra uma cadeia: o humanum encarna e é encarnação do darma.
Tudo isto parece longe da experiência brasileira. Não é. Darma é o mesmo que Axé; svadarma é o mesmo que Cabeça. A dança dos seus significados – a moralidade e a sua negação, o dever e a sua contrapartida, a coisa e o seu contrário - no Brasil é simbolizado por Exu. (Há algum tempo algum tempo um professor de História lamentava não conseguir ensinar a religião dos faraós a seus alunos. Caso típico de falta de falta de ética: o Ma\'at egípcio é o Axé brasileiro.) Pressinto aqui uma objeção: Axé e Cabeça são elementos de uma seita minoritária, o Candomblé, não caracterizam o conjunto do contexto cultural popular brasileiro. Aceito em termos: para começar, o Candomblé é o culto público de uma tradição antiquíssima, a tradição dos orixás, catalizadora de elementos culturais diversos da tradição afro-brasileira. Sula limitação é que, com poucas exceções, não foi até hoje matéria prima para pensar a filosofia e a política do brasil. Se fosse, veríamos que vai muito além de um ritual de terreiro. Nossa crença generalizadora no feitiço é contágio nacional do Axé.
O pertencimento - darma ou cabeça - são patrimônio comum dos povos fora da megamáquina ocidental. Eles provavelmente possuem na sua cultura homeomorfos desses charmosos e ineficazes Direitos Humanos em crise permanente no país do pau-de-arara. Aqui como na Índia o mundo é arcaico, noturno; a modernidade é só uma luz. Numa das histórias de Muníz Sodrê, o Ancestral constata: Nenhum excesso de luz dissiparia todo o poder da noite, o contágio dos enigmas. Para efetivar no Brasil a justiça social e erradicar a tortura de dentro para fora precisamos pensar a noite como poder. Comecemos.