Artigo

Os papéis de Carolina Maria

Publicação original: 2007por Joel Rufino dos Santos

1957. Beirando o Tietê, em São Paulo, espalha-se a favela do Canindé. É véspera de eleição na capital e um jornalista, que acabará famoso, é mandado a cobrir um assunto do tipo "inventa notícia". Cativeiros, facções, narcotráfico - isso ainda não existe por aqui. O jornalista tem a atenção despertada por um bate-boca. Adultos usam indevidamente um parquinho e uma negra catadora de lixo, alta, lenço na cabeça, os ameaça:

- Vou botar vocês no meu livro!

Ela escrevia, de fato, um diário em seu barraco, atulhado do lixo que não pudera vender no mesmo dia. Quarto de Despejo. Diário de uma favelada vendeu cerca de 100 mil cpópias em um ano; 10 mil em três dias, equiparando-se a Jorge Amado e Paulo Coelho. Foi talvez o mais traduzido dos livros brasileiros.

Carolina Maria de Jesus (1914 - 1977) publicou ainda, com suceso declinante, Casa de alvenaria. Diário de uma ex-favelada (1961), Provérbios de Carolina Maria de Jesus (1969), Pedaços da fome (s/data). Postumamente, saiu Diário de Bitita.

- Vou botar vocês no meu livro!

Grafomaníaca, deixou perto de 140 cadernos, folhas avulsas, pedaços de jornal e papelão anotados que os filhos guardam com orgulho até hoje. Antes de catar papel foi empregada, faxineira de hotel, auxiliar de enfermagem, vendedora de cerveja e artista de circo.

Quarto de despejo se abre assim:

15 de julho de 1955. Aniversário de minha flha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.

Carolina foi pobre soberba. "Crioula metida", diziam os vizinhos, que a apedrejaram quando o caminhão de sua mudança saiu. COm o filho nas costas, enfiando papéis e restos de comida num saco, mantinha ares de mulher bonita, "que sabe ler e escrever", capaz de dialogar com polícia e autoridades. Só namorava brancos, de preferência estrangeiros, evitando pretos e nordestinos.

Saiu da pobreza e retornou a ela em menos de 10 anos. Foi época da agitação política (Ligas Camponesas, Reformas de Base, etc.) que o golpe de 1964 cortou. De Adhemar de Barros, Jânio e Jango.

O sucesso de Carolina se deveu, em parte, ao Movimento Universitário de Desfavelamento, que a levou para fazer conferências pelo País. Mas não era de esquerda. Nunca aceitou o papel de "pobre injustiçada", politicamente correta. Gostava de ser pobre sozinha. 

Quarto de despejo termina assim:

31 de dezembro...

Levantei às 3 e meia e fui carregar água.

[...] Espero que 1960 seja melhor do que 1959. 

Sofremos tanto no 1959, que dá para a gente dizer:

Vai, vai mesmo! Eu não quero você mais, 

Nunca mais!

1 de janeiro de 1960

Levantei às 5 horas e fui carregar água.

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