Publicação original: 1989por Joel Rufino dos Santos
Pra que serve o negro?
Para muitos esta pergunta terá um significado preciso: o que se indaga é pelo lugar econômico-social do negro, qual a função desempenhada pela raça, ou pela cor, na atribuição dos lugares sociais, ou, em última análise, de que maneira o negro se insere em nossa estratificação social. Entendida por esta forma a pergunta não é difícil de responder. O Negro serve em nossa sociedade para indicar o pior lugar: o inferno aqui não são os outros, mas os negros.
Teria a pergunta, contudo, outro significado? Para apreendê-lo será preciso ter em vista a crise brasileira, pois contra esse pano de fundo é que o ser negro adquire o seu mais nítido, e dramático, contorno. Há nas ciências sociais poucos conceitos tão elásticos quanto o de crise. Nós o tomamos, aqui, como cadeia de impasses cuja superação, unicamente, conduzirá a nova etapa histórica: superação contida, desde logo, como possibilidade, no âmbito desses mesmos impasses. É evidente, por exemplo, que a nuclearização do planeta é um impasse do processo civilizatório mundial - algo assim como um vestibular da espécie, na expressão de Carl Sagan, de cuja solução depende, absolutamente, a continuidade dele; enquanto, por outro lado, as chances de se chegar a essa solução estarão dadas (ainda que encobertas) na própria existência da nuclearização - a humanidade, como as crianças, só faz as perguntas para as quais, de alguma forma, já tenha uma resposta. Mas a percepção da crise não precisa de vôo tão alto e abstrato, uma vez que não pensamos cotidianamente na catástrofe nuclear, a crise está no próprio cotidiano que como no tempo e nos termos de Hobbes, continua solitário, pobre e brutal.
Há uma cadeia de impasses peculiar ao Brasil, uma crise específica nossa, mas de diversas maneiras participamos da crise da história contemporânea mundial. Em alguns casos reproduzimos no plano interno de população brasileira para população brasileira - os dilemas internacionais, de nações ricas para nações pobres. Em outros, o espaço brasileiro aparece como local privilegiado, inequívoco, da equação contemporânea.
É o caso do impasse gerado pela convivência de culturas ditas tecnológicas e culturas ditas arcaicas. O desafio é, sem dúvida, mundial: como inserir no processo civilizatório, comandado por aquelas, acelerado a velocidades cibernéticas, as culturas e cripto-civilizações que se movem à velocidade do carro-de-boi? Ora, o Brasil, com suas diversas culturas de arché e seus fragmentos de civilizações desaparecidas, convivendo com a cultura e a civilização hegemônicas mundiais (o Brasil, já se disse, é a Bélgica mais a Índia), é um excepcional campo inteligível deste desafio. Basta sair pelas ruas, de olhos abertos, para ver que o Oriente, no sentido não-geográfico, é aqui.
Já alguém formulou, com propriedade, o paradoxo da história contemporânea: se a civilização é um encontro excepcional de culturas diversas, num momento ótimo e num espaço favorável, a civilização é cada vez menos civilização, uma vez que a dominação neocolonial e as hegemonias econômicas confinam e liquidam um número cada vez maior de culturas.
O desperdício de recursos simbólicos que representa o confinamento e a liquidação das culturas não-hegemônicas, só tem paralelo na consumação, utilitária ou não, daqueles propriamente físicos; nos bolsões de fome do Terceiro Mundo; no empobrecimento, a progressão geométrica, de vários países do hemisfério sul; nos nódulos crônicos de violência bélica; no alastramento da crueldade sistemática; na multiplicação dos regimes e formas de governo autoritários e corruptos; nos genocídios; na nuclearização dos arsenais de guerra e na militarização do espaço, etc. O conjunto de desafios posto pela história contemporânea não tem paralelo no passado, até mesmo porque tem a peculiaridade de colocar em cheque a sobrevivência da espécie.
Estas considerações parecem abrir demasiado o leque e cair num pietismo apocalíptico em voga nos últimos anos, característico tanto da "esquerda desbundada" quanto de salvacionismos e "universos em desencanto". O pietismo e o salvacionismo, como aliás também o antropologismo e o psicanalismo, não passam de formas de descrição da crise. São perfeitamente aceitáveis e úteis para esconjurar o demônio, salvo quanto escondem o principal. Muitas vezes me pergunto, por exemplo, por que os exorcistas e os intelectuais brasileiros detestam novela de televisão. É que provavelmente os primeiros vêem nela o pecado encarnado, e os segundos a ausência de crítica social, ou seja, a telenovela é condenada pela Moral e pela Ciência, condenação que não deixa de ser - concedamos - denúncia da crise. Só que denúncia ou descrição superficial, pois os seus parâmetros - a noção de pecado e do princípio de ascensão social, sob máscara de justiça social - é que, na verdade, estão em crise. A novela das oito é um produto horroroso não porque infrinja o código moral de família brasileira (o que incomoda o nosso sentimento pente costa lista do mundo) ou mascare a formidável pobreza do povo brasileiro, mas porque apresenta como progresso o que é decadência. A crise é que o país de Marlboro, como a revolução cubana, só existiu uma vez.
Num plano menos aberto, o da política, se vê também a diferença entre a percepção superficial e profunda da crise brasileira. Se pode pensar, por exemplo, que a debilidade da democracia brasileira reside em não termos partidos fortes e nítidos. O que aconteceria se os tivéssemos? Provavelmente os paradigmas (para ficar na referência mais genérica) da Política seriam respeitados e cumpridos com mais eficiência, a exemplo dos Estados Unidos, o que, apenas com excesso de boa vontade, ou ingenuidade, se pode considerar bom modelo para nós. O que aconteceria se os cripto e pseudo partidos existentes hoje no Brasil se transformassem em agremiações programáticas e consequentemente na disputa do governo – já não digo do poder - e uma de esquerda, sozinha ou coligata, fizesse o presidente da república? Nada. Ou antes: se excedesse certos limites ideológicos, seria derrubado por um golpe militar. Não aconteceria nada, certamente, porque todos os partidos políticos existentes no Brasil partem do suposto de que o desenvolvimento vencerá os nossos problemas – e obedecem em particular a esse paradigma ospartidos socialistas e comunistas, condenados por isso, como temia Weber, a “apertar as jaulas de ferro" da ocidentalização e racionalização. Os partidos políticos cumprem, assim, um papel correspondente ao da novela das oito: exibem ambos, uns como ciência outra como arte, este "fascínio amistoso” que consiste em apresentar como felicidade o que não passa do opróbio, como futuro o que não passa de inferno.
O que tem um movimento social, localizado e de pouca amplitude, como omovimento negro brasileiro, a ver com esse feixe de desafios? Uma primeira resposta está em que a quase totalidade daqueles problemas se manifesta no espaço brasileiro direta ou indiretamente - como é o caso da nuclealização. Ora, nenhum movimento - constante de ações políticas e racionalizações, contextualizadas ambas – pode se pensar abstraindo o quadro geral, em forma de história mas também de projeçãopara o futuro. A sobrevivência e crescimento do movimento negro brasileiro dependem da sua capacidade de refletir sobre o que se convencionou chamar de crise mundial, na sua forma presente e nos desdobramentos.
Serve de exemplo a dramática questão da identidade negra. A história é sem dúvidauma das suas dimensões decisivas - e, como tal, vem sendo esquadrinhada por especialistas e intelectuais negros. A revisão da história brasileira, como consequência das demandas do movimento negro, constitui mesmo um dos fatos mais interessantes do nosso quadro intelectual recente; haja vista, o resgate do episódio palmarino, que fornece à historiografia colonial elementos indispensáveis para elucidar a formação e dinâmica da sociedade escravista. Mas a história não é, por si só, suficiente para desenhar uma identidade negra. Até mesmo porque o seu conhecimento coloca, sem cessar, novas demandas, cujas satisfações costumam estaradiante, não atrás. Veja-se o exemplo da identificação com modelos negro-africanos - explicavelmente por via norte-americana - que foi, no começo dos nos setenta, o primeiro impulso da negritude brasileira. Na Bahia e no Maranhão, onde este impulso, por razões óbvias, foi maior, após breve antropofagia de motivos norte-americanos, se passou a consumir os caribenhos, e jamaicanos, para nos últimos sete anos despontar, enfim, uma apropriação de motivos negro-brasileiros - da cultura e da história do negro brasileiro: a temática dos afoxés e "blocos afro" de Salvador chegou, hoje, à exaltação da África contemporânea e do passado recente do próprio negro baiano. Parece ilustrada aí a "cilada" da identificação da história: ela remete sempre do passado mais remoto para o mais recente.
O que vai ficando claro aos intelectuais negros - intelectuais, aqui, no sentido de os que dão voz a demandas coletivas mais que no acadêmico - é que a construção da identidade negra é, antes de tudo, uma projeção sobre o presente ou sobre o futuro, e num espaço supranacional. Ela seria, em suma: consciência histórica (tendendo para a história recente) + consciência supranacional + perspectiva de presente/futuro. Essa descoberta trouxe como corolário a reflexão sobre os mecanismos de produção da cor, no Brasil - por exemplo. Produziu, também, uma nova categorização do ser negro: negro seria um ser em construção, basicamente auto-definido, e em função das aludidas dimensões; enquanto preto seria a criatura definida pelo branco, a sua banda podre. (A sugestão psicanalítica desse ponto de vista parece evidente: o branco e o preto como Superego e Id, respectivamente2).
A tentativa de incorporar à sua problemática, e, naturalmente, aos seus processos de identificação, a crise mundial, e mesmo latino-americana, é geralmente um ponto de atrito entre o movimento e a consciência brasileira. Esta consciência, mesmo quando se faz de esquerda, prefere ver o Brasil como bloco homogêneo em face do mundo - e homogeneizado pelas tradições helênico-cristãs e ibero-americanas -, sendo, portanto, irrelevantes os pontos de vista étnico-raciais dessa crise.3
Tem havido, justiça seja feita, um avanço da inteligência brasileira no sentido de encontrar algo por baixo dessas tradições, em parte levada pela generalização do princípio de que nada é como aparenta ser, mas em parte também por pressão dos movimentos negros. Como alguns estrangeiros têm contribuído bastante para desmistificar as visões conservadoras de Brasil, foi com otimismo que se aguardou a edição, no começo de 1988, de O Espelho de Próspero, de Richard Morse, autor de um texto estimulante sobre o desenvolvimento de São Paulo.4O livro não desaponta, salvo por uma razão principal: a Ibero-América, que ele contrapõe à Anglo-América, é uma ficção. O propósito declarado de Morse - daí o espelho do título - é tomar as Américas do Sul como "imagem especular" na qual a Anglo-América reconheça suas enfermidades e seus "problemas", deixando, por conseqüência, de jactar-se diante de nós. Seu pressuposto é de que o Grande Desígnio Ocidental, formulado no final da Idade Média, teria duas vertentes: a anglo-saxônica, que preponderou até aqui, e a ibérica (mais particularmente hispânica) que tende a preponderar neste limiar do século XXI - verso e anverso da civilização ocidental. Este pressuposto e aquele propósito não são novidade na literatura sociológica - ou talvez devesse dizer especulativa? -, mas Morse se utiliza deles com erudição, inteligência e óbvia simpatia pelas Américas do Sul. Onde está, então, o "defeito" da sua construção? A Anglo-América é para ele um produto, ou uma criatura, de Calvino + Jefferson + Jeremy Bentham + Mill, enquanto o Ibero-América é uma construção5 de Freud + Kafka + Escola de Frankfurt. Morse despreza, nos seus desenhos dos dois mundos (ou dois ocidentes, como prefere), as histórias sociais respectivas - o que num historiador de formação é sobretudo estranho - e ignora o Oriente que permeia o Ocidente em que parecemos viver. Morse não se dá conta de que o Ocidente é aqui um acidente, o que explica que em seu livro de 190páginas - a escravidão - o mais longo e decisivo capítulo da história ocidental - não apareça uma só vez. Em defesa da construção teórica de Morse se poderia lembrar que o objeto de seu livro - inteligentíssimo, sem dúvida - é a história intelectual ou as interações ideológicas que foram, desde Pedro Abelardo, Vitória e Juarez (para tomar um começo), conformando a maneira de ser ocidental. Se é assim, já não cabe a crítica de que desdenhou a história social das Anglo e Ibero-Américas, mas apenas a de que não considerou as intelectuais e ideológicas não-ocidentais que permearam todo o tempo a linha principal do desenvolvimento, por um lado, e, por outro, os conteúdos que foram sendo recalcados. Um dos livros contemporâneos mais famosos, a História da Loucura de Foucault, teve, para, durante anos interesse distante, pois sua primeira frase é a seguinte: ao final da Idade Média, a lepra desaparece do mundo ocidental”. Acabei por lê-lo com grande proveito, mas só quando aceitei que não dizia respeito à sociedade brasileira, o quetambém acontece com O Espelho de Próspero– ou antes, só dizia respeito a uma parcela do real brasileiro, exatamente a menos importante porque aparente.
O livro de Morse não teria entrado aqui, numa talvez rigorosa apreciação, se não levantasse uma febre; a da magnitude da crise mundial e brasileira: Pois na verdade ele é uma descrição não-pietista do grande fracasso ocidental – do liberalismo, da democracia, da noção de indivíduo, da convivência, da consciência e da ciência, numa palavra. Morse retorna à velha distinção entre sociedades de otherhood (a Anglo-América) e de brotherhood (aIbero-América, para sugerir que só nestas últimas a presença do outro é suportável.6Só aqui a vida não se realiza como solidão, pobreza e brutalidade – em que pesem a solidão, pobreza e brutalidade do cotidiano latino-americano. Aqui é o mundo pensado por Freud ou Freud é um enredo de escola de samba? Na primeira hipótese, a negritude nada determina na Ibero-América, na segunda ela é a célula germinativa e, portanto, a chave do enigma, o código a ser decifrado para sair da crise.
Uma inferência que se pode fazer das idéias de Morse é que em países do tipo do Brasil a crise política crônica em que se debatem se explica pela incapacidade de gerar ideologias hegemônicas. As de natureza liberal e democrática, inclusive o marxismo, se afogam na enorme distância que as separa do povo, enquanto as geradas embaixo, inclusive o socialismo rousseauniano e o populismo, sucumbem ao embate dos férreos interesses oligárquicos, de dentro e de fora. O caminho para romper o círculo vicioso - da tirania conservadora, mesmo sob um regime pseudodemocrático, à agitação de massas, e vice-versa - seria, pois, uma ideologia que, como na Anglo-América ou no Ocidente europeu, alcançasse o consenso, isto é, a adesão dos diferentes grupos de interesse. Estamos diante da velha tese da necessidade de um projeto de desenvolvimento humano para a América Latina, capaz de corrigir os aspectos selvagens dos modelos capitalistas-dependentes. Por outras palavras, se trata de infundir a ética protestante ao capitalismo ibero-americano - substituir completamente os Marios Garneros pelos Ermírios de Moraes. O coronel continuará a esperar sua carta, resignado ao abandono mas perpetuamente esperançoso na salvação.7
A tese é velha e talvez por isso mesmo seja boa: ela reaparece a cada crise de desesperança nas saídas políticas para a dominação oligárquica. Um capitalismo decente em que os ricos se locupletem mas as massas não morram de fome: Guarujás sem Rocinhas. Reaparece também nessas horas a desconfiança de que as ideologias conservadoras na América Latina só são cruéis e anti-populares porque não nasceram no meio do povo - entre índios, cholos e negros -, da mesma forma que os socialismos, particularmente o marxismo-leninismo, têm se mostrado inassimiláveis pelas massas ibero-americanas pelas mesmas razões: as massas não são ocidentais nem ibero-americanas.
Ora, se é assim - e pelo menos como hipótese pode ser assim - o que falta para elaborar aquela ideologia hegemônica, capaz, enfim, de equilibrar os sistemas ibero-americanos, é consultar a idianidade - como tentaria, por exemplo, fazer, no entre-guerras, o marxista peruano Mariátegui - e a negritude. Mas estariam
os marxismos em condições de incorporar a negritude na arquitetura de uma ideologia hegemônica para uso dos nossos países? O primeiro obstáculo está em que Marx e Engels ignoravam a América Latina - aliás uma expressão geopolítica devida às intenções imperialistas de Napoleão III. Do ponto de vista europeu - e o marxismo é tão europeu quanto o liberalismo e o fascismo - a América do Sul não pode jamais ser senão periferia, condenada implacavelmente a se desenvolver para o centro. Engels saudou a ocupação do México pelos Estados Unidos como passo necessário à sua modernização, e Marx lamentou, mais de uma vez, os motins sipaios e indianos anticolonialistas de 1857/58, vendo neles a tentativa de preservar as "classes imobilizadas dessas sociedades orientais", mas a questão indiscutivelmente não é de meros juízos apressados. O materialismo histórico primitivo tinha dificuldade em lidar seja com as sociedades não-ocidentais, seja com as interações raciais e étnicas, vistas as primeiras como sem história e estas como necessariamente secundárias. O neomarxismo terá, contudo, superado esta dificuldade? Recentemente um observador inteligente, e visceralmente comprometido com a luta política, depois de sugerir que o estruturalismo e o probabilismo empirista são também boa fonte para quem se propõe uma longa caminhada, oferece uma saída. Ele trabalha com categorias convencionais do materialismo histórico - tais as de opinião pública, psicologia social, consciência social e ideologia - para concluir: "A partir daí é óbvio deduzir, com base nas hipóteses lançadas, a necessidade de uma ideologia de classe do trabalhador que, para fincar raízes na dinâmica que mobiliza a sociedade brasileira e a expressa, deve ser formulada com fundamento na psicologia social do negro brasileiro, força constitutiva fundamental da classe operária do país e do exército industrial de reserva.”8 A conclusão é auspiciosa, sem dúvida, e corresponde a um avanço com relação à singela constatação de um marxista ortodoxo como Nelson Werneck Sodré de que "no Brasil o negro está por toda a parte". Entre o pesadelo - pois é isso, na verdade, o que parece significar a constatação werneckiana9 - e o programa ideológico de Wilson, o que houve de circunstância histórica foi a crise da democracia racial.
Para isso, pois, serve o Negro: para deflagrar a crise brasileira. E esta, em que consiste basicamente? Podemos examiná-la em dois níveis o nível conjuntural dispensaria, por evidente, maiores detalhamentos, ainda que nos seja difícil abstrair os resultados catastróficos do atual padrão de acumulação; a conversão do estado brasileiro num eficiente transferidor de renda para o bloco de poder que por duas décadas sustentou o regime militar; e enfim, a falência das concepções político-ideológicas à disposição de nossa "classe política”.
Há, contudo, por trás destas circunstâncias uma crise sistemática e mais antiga, localizada na raiz da formação brasileira; e esta, precisamente, é que parece fadar ao insucesso, de antemão, quaisquer formas que as elites brasileiras experimentaram desde o advento da república – fossem conservadoras, liberais, rousseaunianas ou populistas. E desde a república porque só então se passou a projetar o país como nação.
Éramos, com efeito, ao terminar o século 19, uma nação inconclusa, O Exército, como corpo profissional, orgânico, presente em todo o território, só se constituiu entre 1865 e 1870. A escravidão, que deixava a maioria esmagadora da população fora da cidadania, só se aboliu em 1888. O voto universal - salvo para analfabetos - é de 1891. A Federação, idem. O que, desde então, se convencionou chamar unidade nacional, se concluíra - com um rastro de sangue sem paralelo em toda a América - apenas em 1845, com a liquidação da república farroupilha. E, enfim, só com a lavoura cafeeira, por volta de 1860, demos o primeiro passo na direção de uma economia cuja renda gerada se acumulasse, em maior parte, no interior do país.
Aquilo que os militares positivistas e os bacharéis republicanos chamavam de nação, era, pois, um mero projeto. Contavam, é verdade, com alguns elementos indispensáveis: um território, forças armadas (sobretudo Marinha), ponderável unidade linguística, uma tênue e incipiente consciência nacional, que a guerra fizera nascer, uma classe proprietária relativamente homogênea e solidária. Faltava, no entanto, o povo - no sentido histórico de população que vivendo num território dado mantém sobre ele uma relação de apropriação, sobre a qual assenta o direito de cidadania. A população eram negros escravos e índios despossuídos; os primeiros despossuídos até mesmo de seu próprio corpo. Por outras palavras, o desafio da elite republicana era construir uma nação com uma população que estava aqui mas não era daqui.
O modelo com que trabalhavam era o que estava na experiência de quatro séculos de sistema colonial-escravista. Um prócer da República, Rui Barbosa, postulava ser a "pátria a família amplificada". Que família? Se é certo que a invenção humana só trabalha com materiais ofertados pela história, só poderia ser a família patriarcal escravista, a que imperou por três séculos e meio, e não outra. No centro, absoluto, o macho branco; à sua volta, em círculos concêntricos, e pela ordem: seus familiares de sangue, agregados brancos e mestiços e, por último, índios e negros do seu serviço. Como nos sistemas heliocêntricos da astronomia medieval, a estabilidade e a coesão dependiam do girar imutável dessas órbitas fixas.
Quase cem anos passados, e em que pesem mudanças substanciais na organização estrutural da sociedade brasileira, ainda é aquela visão de Brasil que está no senso-comum. O discurso do brasileiro médio a respeito da questão étnico-racial, é, por isso, literalmente dogmático: negros, índios, caboclos são, antes de tudo, brasileiros.
Provavelmente, isto quer dizer que todos eles têm o seu lugar assegurado na grande família brasileira, e, também, que as idiossincrasias e interesses deles só serão tolerados enquanto não ameacem a unidade e a boa ordem do conjunto. Aí está a origem da notória incapacidade brasileira de admitir o diferente (percebido, geralmente, aliás, como qualidade). Aí está também o significado da sentença passada por um profundo humorista: "Aqui não temos problemas raciais: o negro reconhece o seu lugar".
O que entendemos por nação continua a ser, pois, a família patriarcal-escravista amplificada. Os projetos que nossa elite concebeu para ela tinham de entrar em agonia mais cedo ou mais tarde. Os índios - e sintomaticamente eles se intitulam nações indígenas, pois isso efetivamente é o que são, não passando de categorização colonialista o termo índio - não "reconhecem mais o seu lugar"; e nem desapareceram ou integraram a grande família nacional. Antes ao contrário: os movimentos indígenas, ao mesmo tempo que afirmam sua alteridade, exigem o reconhecimento da sua relação de apropriação com uma parte do patrimônio físico dito brasileiro.
Essa agonia profunda e antiga da Nação - uma nação sem povo, concebida à imagem e semelhança da família senhorial - ajuda a explicar o autoritarismo congênito do Estado brasileiro. O Estado brasileiro não é um Moloch criado, há vinte anos, pelo regime militar; ele sempre foi assim, mesmo quando o geriam bacharéis e literatos enriquecidos pelo café, e provavelmente continuará assim se porventura à era dos tecno-burocratas suceder, algum dia, a dos trabalhadores-conscientizados. O jogo político institucional, a burocracia e o aparelho fiscal, as forças armadas e as leis - tudo isso só pode alcançar os parentes marginais da grande família com brutalidade sistemática. Nesse quadro, o que os movimentos sociais recentes, em geral, e mesmo descontando a sua incipiência, trazem de novo é a possibilidade de organizar a sociedade a salvo do braço da nação-estado. A salvo até mesmo dos partidos políticos que tendem, por vício histórico, a encará-los como meros instrumentos de ação política.
Conectada a este aspecto da crise de fundo brasileira, aparece a falência dos conceitos de "cultura brasileira" e de "civilização brasileira". Se pode dizer que entre nós essas categorias só se descolonizaram na cabeça de alguns intelectuais e poucas lideranças políticas. O aparelho de ensino - em crise permanente - e o conjunto das instituições públicas culturais, por exemplo, ignoram o universo pluricultural em que estão imersos. Trabalham como se a população brasileira fosse "irreversivelmente vinculada aos valores da tradição helênico-cristã", mesmo diante do fato óbvio de que os símbolos nacionais sejam negros de origem. O resultado desta miopia é ser a escola brasileira mais ineficiente que aquelas, também subdesenvolvidas, em que até a língua distancia o povo das elites. Outro resultado é se transformarem as instituições públicas culturais em meras repassadoras de verbas para a "cultura propriamente dita" (o balé, a ópera, a música erudita, a pintura moderna, etc.), enquanto a intelectualidade se divide onanisticamente entre o universalismo iluminista e o relativismo antropológico.
Está visto que a crise de fundo brasileira não se esgota nesses pontos aflorados. Ocorre, apenas, que a crise da Nação - ou melhor: dos projetos de nação elaborados até aqui, e das suas subcrises, como a de concepção de cultura e civilização brasileiras, se apresenta mais visivelmente como desafios à reflexão do movimento negro que outros. Ora, diante dela, este movimento poderia se manter alheio (de fato, enganosamente alheio), e sucumbir; ou poderia se colocar no seu epicentro, se contextualizando nele e, ao contribuir para sua superação, se superar também. Na verdade se encontram as duas tendências no interior do movimento negro brasileiro.
Desse segundo ponto de vista, que é o nosso, se vê claramente que a melhor definição de movimento negro é: todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de qualquer tempo (aí compreendidas mesmo aquelas que visavam à auto-defesa física e cultural do negro), fundadas e promovidas por pretos e negros. (Utilizo preto, neste contexto, como aquele que é percebido pelo outro; e negro como aquele que se percebe a si). Entidades religiosas (como terreiros de candomblé, por exemplo), assistenciais (como as confrarias coloniais), recreativas (como "clubes de negros"), artísticas (como os inúmeros grupos de dança, de capoeira, de teatro, de poesia), culturais (como os diversos "centros de pesquisa"), e políticas (como o Movimento Negro Unificado); e ações de mobilização política, de protesto antidiscriminatório, de aquilombamento, de rebeldia armada, de movimentos artísticos, literários e "folclóricos" - toda essa complexa dinâmica, ostensiva ou encoberta, extemporânea ou cotidiana, constitui movimento negro.
A outra definição, excludente, é evolucionista: pressupõe que essa rica dinâmica deva convergir para o patamar superior da luta organizada contra o racismo, no interior do jogo político institucional ou fora dele. Mesmo admitindo a importância e a inevitabilidade do jogo político, estamos aí diante do que alguém chamou "chantagem do maquiavelismo ocidental", que, hierarquizando as ações sociais, estigmatiza como alienadas e inferiores as não explicitamente políticas, e como inconsequentes as que parecem não acumular energia política. As estratégias decorrentes da definição restrita de movimento negro vão, por isso mesmo, do oportunismo conservador (como, por exemplo, ocupar "qualquer espaço concedido ao negro" no sistema de poder) até ao revolucionarismo socialista (que implica em investir sumariamente as energias do movimento num objetivo teleológico). Qualquer que seja a faixa do espectro, porém, estamos diante de uma pesada impotência: a de visualizar a crise contemporânea e brasileira desde fora do bojo da cultura hegemônica no processo civilizatório mundial. Presos à definição restrita de movimento negro, seus protagonistas se movem em círculo, saltando de uma para outra concepção político-ideológica à disposição no universo político visível. Ora, é precisamente a incapacidade de alargar este universo, cujas possibilidades se esgotaram uma a uma, como estrelas que implodem, que constitui hoje o cerne da crise mundial e, por reflexão, brasileira.
As concepções político-ideológicas à disposição neste universo visível assentam todas, com efeito, nos mesmos pressupostos sobejamente conhecidos. Desde um "fascismo amistoso", passando pelos conservadorismo e liberalismo de centro-direita, centro e centro-esquerda, pela democracia-cristã, pelo trabalhismo e populismo de diversos matizes, até os "marxismos", também de variada coloração - sem falar nas combinações livres de algumas delas -, temos na América do Sul, certamente, amostras de tudo o que a cultura política pode produzir. O que algumas lideranças e intelectuais dos movimentos sociais acabam por descobrir, cedo ou tarde - e não foi diferente com os do movimento negro brasileiro - é que os seus sentidos axiais, gerados na etapa do supremacismo colonial europeu, são idênticos e invariavelmente impotentes para solucionar o que quer que seja.
Mas será possível, de alguma maneira, visualizar as crises contemporânea e brasileira desde fora da cultura hegemônica em nosso processo de civilização? E em seguida: no caso de ser possível este exercício teórico, como deduzir dele as estratégias eficazes a serem assumidas pelo movimento negro, de forma a contribuir na superação daquelas crises, e, enfim, da sua própria? Aludimos a certa altura ao confinamento e liquidação de culturas social e politicamente não-hegemônicas. Foi parcialmente o caso do Brasil, onde diversas culturas e criptocivilizações se fundiram sob pressão do escravismo (o que aliás aconteceria também com as culturas indígenas). Não tivemos um só exemplo de confinamento prolongado de qualquer delas; a compressão, que gerou o que se convencionou chamar cultura negro-brasileira, foi a norma. Esta, pelas conhecidas razões históricas, constituiu o núcleo pesado do sistema a que se deu o nome de cultura popular brasileira, acabado de formar pela contribuição de fragmentos de culturas indígenas, européias e asiáticas. Ela é que está por toda a parte - com maior ou menor teor de negritude, por assim dizer - contrapondo-se às maneiras de organizar a compreensão do real privativa das elites, à sua cultura, em suma. Naturalmente, do ponto de vista destas últimas, cultura são apenas as suas maneiras, não passando as do povo de manifestações folclóricas. Esta forma de ver as coisas, inaceitável para os que conhecem os rudimentos da ciência antropológica, prevalece absoluta, no entanto, entre os que gerem o poder, formulam políticas e através dos partidos políticos e, inspirados em diversas concepções político-ideológicas, travam o jogo político institucional.
Ora, se há uma possibilidade de visualizar a crise, e suas saídas, desde fora do seu campo de força (pois aí dentro os seus elementos críticos acabam por compor um circuito estável) é se colocando no ângulo de visão da cultura popular, e mais precisamente do seu núcleo pesado - a cultura negro-brasileira. Mutatis mutandi, no plano mundial, só se poderia visualizar integralmente a crise planetária do ângulo das culturas e civilizações que o processo neo-colonial vai confinando e liquidando rapidamente; e, pois, só com a sua incorporação ao processo civilizatório geral, encontrar as fórmulas de superação da mesma crise. (Há nesta maneira de situar o problema uma simplificação. Tomamos a cultura européia ocidental, tecnológica, que prevalece na civilização mundial, em bloco. Talvez uma releitura de diversos pensadores seus, particularmente os alemães como Heidegger e Hegel, mostraria como freqüentemente se situavam desde fora do sentido dominante naquela cultura).
Não é fácil, entretanto, localizar este núcleo pesado da cultura popular brasileira; não o era mesmo no passado, quando a comunidade negra permanecia relativamente segregada e constituía a quase totalidade da população. Sintomaticamente, um bom número de entidades do movimento negro se dedica à pesquisa "das culturas negras", mas o objeto, fluido e em permanente interação com outros, submetido além disso a incessante disputa de hegemônica, parece escapar.
Será difícil desenhar cientificamente perfil da cultura brasileira, mas isto não tem impedido lideranças e intelectuais negros de tentar o seu esboço; mesmo porque uma coisa será sempre, em parte, aquilo que seus protagonistas dizem que é. Ela será, para começar, uma cultura da exibição – do canto, da dança, dos sentidos e da sedução, da oralidade, da comunhão com o outro e com o sobrenatural - de Brotherhood em suma. As seitas afro-brasileiras, especialmente o candomblé jêjê-nagô, por conservarem relativamente uma visão de mundo e uma teogonia africanas, ocupam o primeiro plano dessa imagem que a inteligência negra busca, dramaticamente, construir. Ela essencializa por exemplo, o Exu - o que tudo assimila, o que tudo comunga, o multiforme, o amoral, o que abre caminhos, o mensageiro entre deuses e homens, aquele que “acertou ontem uma pedra que só hoje atirou".
A cultura negro-brasileira se expressaria de muitas formas, e em diversos contextos – na escola de samba carioca, nos folguedos rurais, nas seitas afro, na literatura oral e assim por diante - permanecendo, no entanto, igual a si mesma. (Advirto, ainda vez, que não se trata aí de um desenho antropológico da cultura negro-brasileirasobre o qual existe, aliás, farta bibliografia; se trata desta cultura na percepção de um movimento social).
Em conclusão, é do ponto de vista desta cultura negro-brasileira - desde fora, da cultura hegemônica - que talvez se possa visualizar a crise brasileira. A esta altura, se apresenta o seguinte problema: Como podem as lideranças e intelectuais negros se situar no interior daquela cultura? Não há resposta teórica pronta a esta pergunta, mas o esforço em sua direção mais cedo ou mais tarde alcançará algum êxito. Tal esforço começa por corrigir, como já se disse, a definição de movimento negro: ele não é visto mais como vanguarda politizada em cuja órbita gire o conjunto da dinâmica negra. O movimento negro já não tem centro fixo, nem objetivos teleológicos. Não se trata, portanto, de dar resposta político-ideológico à crise brasileira - isto seria permanecer ainda dentro do espectro "maquiavélico" da civilização ocidental-, mas de contrapor ao conjunto de concepções ideológicas à disposição, um outro conjunto, estruturado sobre outros sentidos, princípios e valores. Serve de exemplo a idéia de nação - embora o problema não se limite a este, naturalmente. Em qualquer faixa do espectro visível ela obedece ao modelo patriarcal-escravista (a nação brasileira como grande família em que todos têm o seu lugar assegurado e fixo). A cultura negro-brasileira, ao que tudo indica oferece outro modelo: a família alargada, em que a tia, ou iyá, para usar o termo nagô, ocupa o centro, e na qual a agregação de parentes se faz de preferência por adoçãoe não por co-sanguinidade, havendo poucos papéis prévios e lugares fixos. Muitas lideranças e intelectuais negros parecem convencidos, na atualidade, de que essa família extensa e aberta possa se contrapor à que serviu de matriz para a concepção de Brasil.
A segunda questão que propusemos é de ordem estratégica. Como deduzir desta descoberta (a saber: a possibilidade de visualizar a crise brasileira do ângulo da cultura negro-brasileira) linhas de ação para o movimento negro? Uma resposta provisória é a de que o movimento negro deveria funcionar como ponte entre a dinâmica negra e o processo político-ideológico brasileiro, algo assim como um transferidor de energia. As saídas da crise brasileira - e esta é apenas outra fórmula equivalente - estão encobertas para os que a visualizam desde dentro da cultura hegemônica no processo civilizatório brasileiro; mas não o estão para um movimento étnico e social, no sentido amplo. No sentido amplo, quer dizer: que se confunda com as próprias e múltiplas manifestações da cultura negro-brasileira, acrescentando-lhes, desde dentro, o fermento da consciência disso que convencionamos chamar crise mundial e brasileira. Linhas de ação renovadoras do movimento negro brasileiro, capazes de fazê-lo avançar além dos atuais limites, deverão se deduzir, então, daquele novo ângulo e desta redefinição de papel.
1.Sublinhado aqui para assinalar a sua autonomia com relação a classes sociais.
2.Amostra da aplicação do método psicanalítico à problemática negra está em SANTOS, Neuza. Tornar-se Negro. Ed. Graal, RJ, 1982.
3.Ver RISÉRIO, Antônio. Carnaval Ijexá. Ed. Corupio, Salvador, 1981.
4.Formação Histórica de São Paulo DIFEL,197.
5.Construção no sentido em que esses mundos foram pensados por esses intelectuais, como aliás também produto e criatura.
6.Uso aqui a fórmula sintética de Lévi-Strauss.
7.Inverto aqui a fórmula com que Morse resume o drama do célebre coronel de Garcia Marquez; "O coronel da história de Garcia Marques está perpetuamente esperançoso na salvação mas resignado ao abandono, como estava o próprio romancista escrevendo no exilio de seu apartamento em Paris".
8.BARBOSA, Wilson. "Materialismo Histórico e Questão Racial", in Estudos Afro-Asiáticos 12, Agosto de 1986, C.A.A.RJ.
9.Não sugiro que a presença do Negro para sodré seja um pesadelo, embora o seja para a sociedade brasileira. Digo que o seu marxismo só conseguia incorporar o Negro como vítima, e não como agente de mudança histórica.